Nos idos de 1959, um grupo de notáveis, talvez então ainda não tão notáveis assim, lançou a revista Almanaque, uma aventura financiada por Joaquim Figueiredo Magalhães, editor da Ulisseia. José Cardoso Pires, Luís de Sttau Monteiro, Alexandre O’Neill, Augusto Abelaira, Baptista-Bastos, Augusto Abelaira, Vasco Pulido Valente e José Cutileiro, a redacção de luxo da revista, talvez não se lembrassem ou sequer soubessem que, seis décadas atrás, Eça de Queirós escrevera um extenso texto, à laia de prefácio, para o Almanach Encyclopedico para 1896, dado à estampa pela Editor A. M. Pereira, de Lisboa.
Esse texto começa por um louvor às «verdades de almanaque», aquelas «verdades iniciais que a humanidade necessita saber, e constantemente rememorar, para que a sua existência, entre uma Natureza que a não favorece e a não ensina, se mantenha, se regularize, se perpetue». Tratava-se do saber prático, do conhecimento de verdades elementares sobre dados tão essenciais como o mês certo para semear o trigo e, dizia Eça, se todos os livros ardessem bruscamente, desaparecendo para todo o sempre, nem por isso acabaria a civilização humana, posto que se conservasse um, não mais do que um, «almanaque inocente», contendo indicações genéricas sobre a cronologia, a religião, o estado, a lavoura, o direito. Isso bastaria para nos salvar.
Os almanaques mantêm estreita conexão com o tempo, com essa «imprecisão misteriosa a que chamamos tempo», a qual é, para os homens, uma planície uniforme e homogénea, sem forma e sem caminho, sem fim e sem luz. O calendário ordena-a essa planura árida por anos, meses, semanas, dias ou estações do ano, que são quatro apenas porque assim quisemos que fossem, imaginária e artificialmente. Depois, o almanaque completa o calendário, dá-lhe forma e sentido, preenche-lhe o conteúdo, dizendo o que respeita e é próprio de um dado mês ou semana, que santo se venera num dia, quando começa o Inverno. Serve, assim, de «livro disciplinar que coloca os marcos, traça as linhas, dentro das quais circula, com precisão, toda a nossa vida social», dizia Eça de Queirós. Sem os almanaques, acrescentamos nós, tudo se perderia: o sentido da religião, os actos da vida urbana, o amanho correcto dos campos e os ciclos das sementeiras, a regularidade do existir colectivo e individual.
Cumprem por isso os almanaques uma exemplar missão cívica, até política, actuando como poderosos promotores da ordem, da disciplina sã, virtudes nucleares num tempo que, segundo Eça, tendia para o anarquismo e para a balbúrdia, para o desapego ao Estado, para o incumprimento dos mais elementares deveres que todos e cada um têm perante a sociedade em que em comum vivemos.
Por fim, mas não por último, os almanaques são fontes de ensinamentos concretos, palpáveis e de uso corrente, ministrando uma ciência quotidiana e prática, a «ciência de almanaque», bem mais útil e valorosa do que a «ciência das escolas», vaga e difusa, abstracta em excesso. Condensam o saber empírico em prescrições suaves, mas firmes, sobre como se tira uma nódoa de azeite de uma fazenda de lã ou como se desenferruja uma chave velha. O homem, diz Eça, pode viver até ao fim dos seus dias sem conhecer o sistema filosófico de Descartes ou a história dos deuses fenícios, mas jamais pode prescindir, para o seu sustento e bem-estar, da sabedoria útil que os almanaques lhe transmitem em cada página.
Talvez o Almanaque de 1959 não tivesse plena consciência de tudo isto, da sua transcendente importância política, religiosa, cívica, existencial. Pode mesmo afirmar-se que, se soubessem disso, os que lançaram a revista nos finais da década de 1950 nunca se teriam aventurado em tal empresa. De todo o modo – e o ponto é relevante, em 1959 como em 2022 –, quiseram e fizeram uma publicação que, ao menos na aparência, se afigurava como um verdadeiro e próprio almanaque, até nos singulares desenhos da capa, alusivos ao signo zodiacal do mês em causa, da autoria do genial Sebastião Rodrigues. E depois, no interior, conteúdos sobre os astros, floricultura, caça e pesca, dizendo-se que plantios eram adequados a cada época, que peixes ou aves se deveriam capturar numa dada fase ou estação do ano, além de conselhos sobre como haveria um cavalheiro portar-se perante os outros, se acaso tivesse aspirações sociais ou pretensões de bom-gosto. Na aparência, a Almanaque (ou o Almanaque, se preferirmos o masculino) era um autêntico e genuíno almanaque, ainda que, num saboroso exercício de détournement, subvertesse as liturgias e as regras convencionais desse tipo de publicações. O propósito era irónico, do princípio ao fim, e sem dúvida um tanto snobe, algo que, de resto, era aberta e plenamente assumido pelos redactores da revista.
O que dela ficou, ao fim destes anos todos, talvez seja pouco, demasiado pouco para aquilo que a Almanaque representou à época em que viu a luz, fátua e efémera, por certo, mas ainda assim brilhante no escasso tempo em que durou. Não está em causa o número de fiéis, que deve ter sido escasso e ultraminoritário, a avaliar pelo rápido insucesso comercial desta empresa. Em todo o caso, e apesar de extinta ao fim de alguns números, a Almanaque teve uma originalidade desconcertante no panorama editorial e cultural da altura[1].
Não se sabe – logo veremos! – se esta nova tentativa de Almanaque, lançada no século XXI e com meios electrónicos, terá a mesma sorte da sua predecessora, e com ela partilhará um destino refulgente, mas efémero. Não se sabe, ninguém sabe. Mas sabe-se que, em meados de 2022, entre os escombros da Covid e as ruínas da Ucrânia, umas dúzias de almas, portuguesas e bondosas, decidiram dar-se à estampa. Vamos lá ver como corre.
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[1] No livro O mais sacana possível (Tinta da China, 2022), de António Araújo, o leitor encontrará uma descrição mais detalhada da revista Almanaque.