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O Bafo Atmosférico

As ideias voejam na atmosfera? Ainda antes das alterações climáticas, uma linhagem de espíritos superiores, de Sterne a Calisto Elói, já atribuía à atmosfera o poder do esclarecimento. Se lá chegavam de mais alto, as ideias de lá se lançavam em baforadas; sem destino determinado ou favorecendo alguém, apanhavam-se como quem respira. O firme fundamento desta crença deve-se à ousadia do latino que equiparou o bafo do entusiasmo à trivial inspiração; não tendo propriamente descoberto a atmosfera, comprovou que o entusiasmo depende tanto do bafo como do exercício de pulmões e vias aéreas, ficando em consequência sujeito a dois riscos específicos: o desperdício, quando ninguém o acolhe, e a intercepção, quando alguém arrebata o que seguia destinado a outro.

Manuel Bandeira, segundo testemunho de Carlos Drummond de Andrade, chamava inspiração a «certa facilidade, que em determinado momento nos ocorre, para fazer uma coisa». A mera escolha do verbo “ocorrer” denuncia o conhecimento daqueles riscos. Com efeito, a facilidade ocorre, não é coisa que se detenha nem destreza que se treine: está adiante, sai ao nosso encontro, acontece — calha! Sobretudo, Manuel Bandeira conformou-se bem com a própria ideia de calhar: e talvez por isso definisse a cena do bafo inspirativo com evidente despretensão — e evidente facilidade. 

Nenhuma novidade, de resto. No Itinerário de Pasárgada (1954), singularíssimo ensaio de autobiografia poética, Bandeira confessa que, depois de Libertinagem (1930), se resignou à condição de “poeta quando Deus é servido”; e acrescenta que tomou então “consciência de que era um poeta menor”. Interessantemente, foi com esse livro e os que se lhe seguiram que se tornou o maior deles todos, os brasileiros poetas. A crítica — ou pelo menos a que evita do desalojar “um espírito do conceito onde ele encontra segurança, disciplina e motivo de energia” (Eça) — tendeu a fixar-se na humildade do menor, que fez fortuna, em prejuízo da apologia da inspiração, afinal relevantíssima. A consideração de menoridade depende aliás da comparação com certa declaração peremptória de Valéry — a saber: que preferiria compor obra medíocre en toute lucidité a escrever uma obra-prima em estado de transe —, posta em confronto com o que ele próprio, Bandeira, terá verificado: que o que fazia “em esforço consciente” resultava em insatisfação, enquanto o que provinha de “alguma espécie de transe ou alumbramento” quando menos o aliviava de angústias. Como quer que seja, não há motivo para que não se valorize na autocrítica a defesa da inspiração em vez da depreciação de si mesmo, sobretudo se causada pelo prestígio da poética en toute lucidité.

Acresce que Bandeira, sempre no Itinerário de Pasárgada, descreve a manhã da sua estrela poética por meio de certa conjunção pneumológica, digamos assim: a tuberculose, em 1904, obriga-o a abandonar a Escola Politécnica de S. Paulo, onde planeara formar-se em arquitectura; a mesma tuberculose, em 1913, leva-o ao internamento no sanatório de Clavadel, na Suíça, onde terá pensado pela primeira vez em publicar um livro de poesia. O sanatório foi morada, condição de base; e por estar na montanha, condição superlativa para captação de baforadas. 

Em 1913, Manuel Bandeira pôde encontrar, entre os companheiros de infortúnio, não Valéry ou Eugénio de Castro, mas Paul Éluard e certa Mlle. Elena Ivanovna Diakonova, jovem russa com quem ele «andava de namoro» (Éluard, não Bandeira). Éluard, não sei se já então lhe chamava Gala — ela, por seu lado, não lhe podia chamar Éluard, que ele ainda não era. A verdade é que se casaram; e ao cabo de algumas tropelias, e no âmbito — e que âmbito! — do envolvimento com o movimento surrealista em que ambos militaram, Gala viria a casar-se com Salvador Dalí. 

(Talvez não venha a ponto o seguinte chiste: um crítico brasileiro de confissão modernista — em versão actualizada e imaginativa — arriscaria que, fosse Oswald de Andrade a conviver com ela no sanatório, e Gala, em vez de musa do surrealismo francês, ter-se-ia tornado a protonotária do movimento antropofágico brasileiro.)

O que vem a ponto dizer é que será já enquanto mulher de Dalí que a vamos encontrar referida no Itinerário ; e precisamente antes da frase em que Bandeira caracteriza o colega de sanatório: «Éluard tornou-se um dos grandes poetas da França e do mundo, mas o rapaz de Clavadel não deixava ainda entrever as suas possibilidades: foi ao contato dos dadaístas e depois dos surréalistes que se formou definitivamente». Percebo neste encadeamento a indicação sub-reptícia de que Gala não teve relevo decisivo na formação de Éluard enquanto poeta, presunção que podem acoimar de misógina, de resto sem nenhuma razão: estamos a falar de musas — e o problema pode ter sido justamente Éluard tê-la tomado por musa. Ora, as musas, como se sabe, não se tomam — é-se tomado por elas. Mas Gala podia ser musa? Alguns relatos de fonte independente, autorizam-me a negativa. Parece certo que encorajava o namorado a resistir à vontade dos pais, que não o queriam poeta e lhe contrariavam a inclinação, vocação ou o que fosse que Gala acolhia e espevitava. Tal teria bastado em qualquer altitude para a graduar em musa. Mas os mesmos relatos contrariam essa possibilidade: é que também lhe criticava os versos, e em sentido genuíno: discriminava os bons dos maus, os que preferia e os que repudiava, imagino que sem acrimónia mas também sem rebuço. Certo que, a ser verdade, não se lhe nega o merecimento da frontalidade, mas não deixa de ser contra-senso — por graciosa que se mostre a figura de uma musa inspiradora de versos que detesta après coup.

É antes de presumir que Gala, por intransigência crítica ou ímpeto de juventude, se constituiu uma espécie de pérgula onde os meandros poéticos de Éluard decorreram abrigados de bafos atmosféricos. Ao passo que Bandeira, livre de trepadeiras, quero crer que os recebeu sem filtros nem dispositivos alheios. Cuidando dos seus versos, galgou o indispensável degrau da primeira vez: «Foi em Clavadel que pela primeira vez pensei seriamente em publicar um livro de versos.» Assim, terá atingido o que Éluard já tinha, a vocação poética, e desde esse momento ficou em vantagem do ponto de vista atmosférico. Além de que, sabendo francês, muito provavelmente interceptou ideias poéticas destinadas ao jovem Éluard. Aliás, prova disso mesmo é que Éluard, como já disse, nem sequer sabia que se tornaria Éluard e apenas se reconhecia um mero Paul Eugène Grindel. O sempre presente Bandeira (nesta história, bem entendido) informa que, em carta que mais tarde dele recebeu, ficou a saber que passara a assinar-se Éluard pour des motifs très littéraires, quem sabe se en toute lucidité… Bandeira, por sua vez, pode ter demorado a reelaborar o que interceptou ou apenas pressentiu ter interceptado. Mas parece-me fora de dúvida, após cuidadosa consideração do poder poético da atmosfera, que esta frase do Itinerário de Pasárgada: «Se eu tivesse algum génio poético, certo poderia, partindo dessas brincadeiras que meu pai chamava ‘óperas’, ter lançado o surréalisme antes de Breton e seus companheiros» — deveria reescrever-se assim: «Se não fosse a guerra e eu tivesse ficado mais tempo no sanatório, certo poderia ter lançado o surréalisme antes de Éluard e sua Gala». Gala, por sua vez, talvez gostasse de gatos; e ainda que não gostasse, também não duvido de que em algum momento lhe terá sido destinado o petit chat gris et blanc, o gatito do poema «Chambre vide» que aparece em Libertinagem. Mas pode ser efeito da aliteração — se não for preconceito. 

Em qualquer caso, nada disto é de valia nenhuma. Vi escrito há dias que muitas ideias são impiedosamente pulverizadas pelos ultravioletas e por isso ninguém as alcança. Não encontrei nenhuma indicação de que as montanhas estejam protegidas desses efeitos, que aliás me parecem fantasiosos. O meu propósito era declarar a montanha como superlativo da inspiração; mas acho que já não chego a tempo. Os ares parecem muito pouco propícios na montanha; nem temos vida para andar por lá à espera da vocação; tão-pouco se apanham ideias que não tenham sido filtradas pelos satélites imperialistas ou açambarcadas por hackers gananciosos que as  contrabandeiam reduzidas a simulacros inócuos. Vale sempre, é certo, o détachement ou a cena meta — histórica, filológica, genealógica, teleológica… Ir à montanha examinar os efeitos da montanha em vez de os sofrer; sujeitos activos, não pacientes de inspiração; obreiros com projecto, não ociosos expostos ao sol, à neve e ao bafo adventício. Ora, nada adianta. Que ânimo ou proveito viria de saber que certo bafo encontrou a primeira instituição de acolhimento nos pulmões de Teófilo Braga? Acolhimento, no entanto, é palavra bonita; clara conotação de hospitalidade, generosidade, solidariedade; já instituição é funesta, sugere asilo de desvalidos, plataforma de vadiagem e vilanagem, até covil de miseráveis sem voz nem vocação, o lúmpen dos inspirados. Não, nada a fazer; sequer tocar um tango argentino. 

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