O meu gosto pela discussão pública é de facto inexistente. […] A ideia básica é que […] já se atingiu um estado de hipertrofia de interacção social. Não se deve por isso colaborar numa expansão desta hipertrofia […]
– M. S. Lourenço
The real opposition is the media. And the way to deal with them is to flood the zone with shit.
– Steve Bannon
- Publicar textos com regularidade é algo que, na minha lista de inclinações, sempre teve lugar de destaque. Competia directamente, mas no fundo dessa lista, com ser submetido a pequenas cirurgias sem anestesia e outras experiências semelhantes. E, no entanto, aqui estou eu alinhando neste projecto. Assumindo a contradição, vou arrancar neste espaço n’Almanaque explorando o(s) porquê(s) desta minha antipatia a publicar regularmente.
- Obviamente (pelo menos para quem me conhece), a verdadeira resposta é a preguiça. Mas, para evitar que este primeiro texto termine já aqui, vamos, por uns instantes, admitir uma outra possibilidade intelectualmente mais sofisticada:
- Tese: a produção e publicação regular de “comentário” é parte integrante do sistema que nos desgoverna.
- O resto deste texto explora a ligação entre esta desinclinação pessoal, confessada acima, e algumas ideias na área em que tenho vindo a intervir publicamente, nomeadamente: a reforma do sistema político. (Para o leitor desconfiado ou impaciente, adianto que rapidamente se revelará que a componente subjectiva desta história apenas serve de pretexto para introduzir o tema mais amplo.)
- Comecemos por despachar (entre bocejos e num registo BBC Vida Selvagem) a parte mais chata, que prometo ser breve e nos servirá de ponto de partida: os humanos são animais com fantásticas capacidades cognitivas, especialmente quando as utilizam colaborativamente. Em 2022, estão organizados em sociedades de variadíssimas dimensões, muitas delas operando de forma razoavelmente não-violenta e dotadas de recursos materiais, práticas sociais e tecnologias capazes de assegurar a sua subsistência e conforto de forma continuada.
- Realizemos agora uma breve “experiência mental”. Vamos imaginar uma divindade malévola e dedicada a causar sofrimento a estes simpáticos bichos altamente capazes de que falámos no ponto anterior. A tarefa não é fácil: dados o conhecimento, a organização social e os recursos acumulados, os humanos não parecem estar numa má situação e – o que ainda dificulta mais as coisas! – as suas capacidades provavelmente permitir-lhes-ão resolver muitos dos problemas com que se venham a cruzar. Como lixá-los de forma eficaz?
- Uma forma prometedora de atingir esse objectivo, se esse deus mal-intencionado estivesse inspirado, seria: vamos dotar os humanos de péssimos mecanismos de decisão colectiva. Dessa forma, por muito capazes que esses animais sejam ao nível individual, e mesmo que se encontrem numa situação que lhes seja globalmente “favorável”, eles não serão capazes de navegar — colectivamente — os desafios que se lhes apresentem e que requeiram acção colectiva. Essa seria uma maneira elegante de os sabotar: apesar de individualmente competentes, os humanos tornar-se-iam colectivamente incapazes de promover o seu próprio bem-estar.
- Vamos dar uma ajuda a esse deus decidido a tramar esta simpática espécie. Façamos de conta que fomos contratados como “consultores” para desenhar e colocar em prática este gigantesco projecto. (Se isto ajudar a tornar o cenário mais verosímil, podemos supor que as várias McKinseys apresentaram propostas com valores que claramente ultrapassavam o orçamento do projecto e foi, por isso, necessário recorrer aos leitores d’Almanaque, que obviamente trabalham num regime pro bono…)
- O nosso “cliente” foi claro ao identificar a questão a que devemos dar resposta, nomeadamente: quais os traços essenciais de um mecanismo de governação democrática para assegurar que os humanos se auto-sabotam?
- É importante notar que o “cliente” quer especificamente uma forma de governação a que se possa chamar “democrática“. A alternativa — entregar o poder a um qualquer autocrata — aparenta ser uma solução fácil para o problema, mas não é sustentável. Os humanos já a experimentaram várias vezes e tudo indica que eventualmente o regime ou colapsa ou se transmuta.
- Após alguma reflexão, chegámos a uma conclusão: se queremos uma forma de governar “democraticamente” uma sociedade de seres capazes (tanto em termos cognitivos como colaborativos) que consiga levá-los a realizar péssimas escolhas, então os dois elementos-chave — nessa insidiosa forma de participação colectiva — são a distracção+desorientação e a “individualização”.
- Distracção+desorientação: é inconveniente, mas trata-se aqui de bichos realmente inteligentes. São capazes de processar bastante informação, construir cenários, estimar a plausibilidade de cada um deles e, com base em tudo isso, fazer escolhas. (Se essas escolhas são “racionais” ou não é tema para outro dia.) Como sabotar o uso dessas faculdades cognitivas ao nível de cada indivíduo? Nada melhor do que criar mecanismos sociais de distracção que fragmentem a atenção de cada um e a dirijam em direcções não-prioritárias. E, naquelas ocasiões em que os humanos consigam efectivamente concentrar-se em questões importantes, importa que o manancial de informação, perspectivas e caminhos alternativos seja tão vasto e desorientador que eles fiquem paralizados pelas opções. Em resumo: o nosso sistema de governação deve assegurar um “regime de atenção” e um ecossistema de informação que manufacturem, de forma eficaz e em larga escala, distracção e desorientação. (Nota: nem entrámos aqui no familiar território da crítica à indústria cultural, focando simplesmente o regime de atenção e o volume.)
- “Individualização” de como participamos nas decisões colectivas: mesmo estando os humanos adequadamente distraídos (a maioria do tempo) e incapacitados pelo efeito desorientante da hiperabundância de informação (todo o tempo), continuaria a existir o risco de eles conseguirem, através da colaboração, combinar as suas capacidades cognitivas que tivessem “sobrevivido” ao chamamento dos sorvedouros de atenção. Dessa forma, eles poderiam, ainda assim, chegar a decisões colectivas razoáveis. É evidente que este problema tem a sua origem na capacidade humana de colaborar, logo — para promovermos péssimas decisões colectivas — a solução passa por minimizar essa possibilidade. Em resumo: devemos assegurar que nos nossos processos de decisão colectiva não haverá espaço para a colaboração.
- Este último ponto pode parecer contraditório e alguns perguntarão “como pode haver decisões colectivas sem qualquer colaboração?“. A resposta é fácil: basta tomarmos decisões colectivas por um mecanismo que se limita a agregar as decisões individuais de todos os membros do colectivo, não tendo lugar reflexão e deliberação em conjunto. A frase anterior pode parecer demasiado abstracta, mas é fácil concretizar. Um exemplo de um mecanismo para agregar escolhas individuais, sem qualquer colaboração, que todos conhecemos e que é amplamente utilizado é… tomar decisões colectivas por votação.
- Juntas, a distracção+desorientação e esta “individualização” asseguram que uma democracia de seres individualmente capazes é, a qualquer momento, colectivamente capaz de gerar péssimas decisões.
- Concluindo, os resultados desta breve “experiência mental” estão, de maneira nada auspiciosa, perfeitamente alinhados com o nosso sistema de decisão colectiva na sua configuração actual, o qual tendemos erroneamente a tomar pela única forma conhecida de “democracia”.
- Ora, e o que tem isto tudo a ver com a minha hesitação pessoal relativamente a publicar regularmente? Claro que a produção de discurso e a sua circulação servem propósitos importantes. Por exemplo, são parte do processo através do qual poderemos, enquanto sociedade, desenvolver soluções para nos governarmos melhor. Mas, ao mesmo tempo, apenas podemos estar verdadeiramente certos de que escrever e publicar são maneiras de contribuir para a cacofonia em que vivemos. E, a não ser que estejamos mesmo confiantes da utilidade do que temos para dizer, ao publicarmos arriscamos ser mais parte do problema do que da solução. Falo, claro está, de estarmos a agravar a dinâmica a que chamei acima distracção+desorientação.
- Especialmente quando se assume o compromisso da regularidade, torna-se inescapável que haverá ocasiões em que se estará a recauchutar ideias e encher chouriços num mundo que (forçando a metáfora) já está a afundar-se sob o peso de tanta charcutaria.
- Para mais, nessas ocasiões, arriscamos estar a ocupar um espaço de atenção que poderia ter sido usado por outra pessoa com algo efectivamente interessante para dizer naquele momento (e que calha não ser uma “habitual“). Enquanto leitor, esta é uma sensação que me é desagradavelmente familiar.
- Aqui fica, por essas razões, o meu compromisso de que tentarei que este canto d’Almanaque seja sempre um convite à reflexão que me pareça genuinamente merecedor do tempo do leitor… ou nada. E, claro está, tudo isto numa zona livre de charcutaria, que a preguiça é mesmo real e dizem-me que encher chouriços dá trabalho. Até uma próxima.