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Um Certo Tipo de Relação

No passado mês de Abril, dois psicólogos e académicos, Andrew Devendorf e Sarah Victor, publicaram no The Conversation,  uma plataforma ( é assim que se diz não é?)  que começou na Austrália,  um artigo sobre o coming out proud dos psis. É melhor nem traduzir. O assunto? A saúde mental dos técnicos da dita. Mil e setecentos psicólogos foram inquiridos (embora muitos  fossem apenas académicos, não psicoterapeutas): 80% assumiram problemas de saúde mental e 48% declaram ter recebido diagnóstico profissional sobre esses problemas. A ideia é  simples: a nossa frágil saúde mental pode ajudar o trabalho no consultório. Depois lá vem a cantilena do estigma, mas essa não me interessa.

Ora muito bem. Nada de novo sobre a saúde mental ser problemática em psis. Conheci muito bem em carne e osso psiquiatras e psicólogos mais doentes do que muitas  pessoas que trataram. Outros conhecerão polícias-traficantes, juízes corruptos, etc. É óbvio que a diferença está na legitimidade: o artigo pretende mostrar que se pode ser/estar doente  e psicoterapeuta. Enfim, também se pode ser polícia traficante e juiz corrupto até se ser apanhado. Temos assim que a diferença é que mesmo depois de alguém assumir problemas de saúde  mental pode e deve continuar a tratar pessoas. Não podia concordar mais.

Digo muitas vezes  às pessoas que tenho à minha frente: “Nesta sala só há um doido e não és tu”.  Como qualquer ilusionista, aproveito a distracção. As pessoas julgam que a minha declaração inicial é uma simpatia, um peixinho da horta.  É uma verdade de quatro pernas. Duas põem as pessoas mais descontraídas. Chegam muitas vezes afogadas em culpa por terem rituais obsessivos-compulsivos ou por nutrirem desejos inconvenientes. As outras duas pernas ajudam-me a ajudá-las porque me obrigam a descer ao poço em vez de ficar cá em cima a dar apoio moral.

Exemplos concretos. Tinha trinta anos e enterrei um filho, o João, com ano meio. É óbvio que fiquei com um insight ( como dizem os burocratas psis) assaz peculiar dos lutos. Sobre  a inércia e a preguiça, essas sedutoras e literárias máscaras da depressão, também uso os meus superpoderes de empatia à Gomes de Sá. Por exemplo, não fico nada impressionado quando a pessoa parece hiperactiva e curiosa  por muitas coisas. Sei muito bem, e no osso, que isso esconde um desinteresse geral por quase tudo. No outro dia um jovem com mais matrículas universitárias do que pulgas num rafeiro respondeu-me assim quando lhe perguntei sobre o seu calendário de exames: “Não tenho acompanhado”. Ele não se deu conta mas o Ungaretti, o meu mestre do hermetismo italiano, ficaria invejoso. O George Constanza (do Seinfield) seria talvez o único ser de luz capaz de proeza tamanha. Não tenho acompanhado é o que respondemos quando nos perguntam se vimos a final do triplo salto da Taça Latina.

O bom de tudo isto é que, como em qualquer outra relação, trata-se de encaixarmos uns nos outros. Quando começamos num trabalho novo não contamos aos colegas detalhes da nossa vida sexual. Numa relação terapêutica vale o mesmo. O psicólogo vai-se ajustando. Há gente com  a qual os meus traços de carácter (não o tenho mas ficamos assim) ajudam a criar um bom clima. Há gente que passou por coisas que passei e outra que conseguiu coisas que eu sempre quis mas nunca conseguirei.  Suponho que isto acontece a todos os meus colegas. Então o mesmo se aplica aos tais assuntos de saúde mental. Dito isto, ele há coisas nas quais não creio.

Nunca poderia ajudar uma pessoa com défice de atenção porque nunca ultrapassei isso.  Por outro lado, esse mesmo défice de atenção permite-me fazer várias horas de clínica porque  passo de  um velho de oitenta anos com deterioração cognitiva para uma discussão com uma mulher inteligente  sobre o amor, o sexo e a rotina.  Já na  caldeirada estóica sinto-me à vontade. Ao contrário da publicidade, nada tem a ver com resistência ou grace under pressure. Se quiserem um slogan será a famosa ode de Horácio: despede-te do dia que passa e não esperes nada do dia de amanhã. Em linguagem de pedreiro, a minha: Já lerpaste?  Então aprendeste que estamos cá para nos lixarmos, por isso senta-te e aprecia o Benfica.

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