Os números variam de acordo com o país e metodologia, mas são todos invariavelmente altos: dez a quinze por cento das gravidezes terminam num aborto espontâneo, na esmagadora maioria dos casos durante o primeiro trimestre.
Aconteceu-me a mim. Por estes dias, teria nascido o meu terceiro filho. Infelizmente, algures entre as 10 e as 12 semanas de gravidez, o embrião deixou de se desenvolver e morreu. Nunca conheceremos os motivos, mas o mais provável é algum tipo de malformação genética.
Tive muita sorte (“sorte no azar”, como dizem os alemães, “Glück im Unglück”, uma expressão de que me acontece muitas vezes sentir a falta) na forma como passei por esta experiência, que podia facilmente ser profundamente traumática.
Em primeiro lugar, tive a sorte grande de me ter acontecido ao terceiro filho, já absolutamente certa de que posso ter filhos, de que o meu corpo consegue carregar uma gravidez até ao termo, de que sou biologicamente compatível com o pai que escolhi.
Em segundo lugar, tive a sorte imensa de descobrir esta perda numa ecografia, com a minha médica de vários anos, de poder processar aquela perda intelectualmente em primeiro lugar, em vez de correr para o hospital em pânico com uma perda de sangue súbita.
Em terceiro lugar, tive a sorte de ter começado devagarinho a perder sangue alguns dias depois de ter descoberto e de ter abortado espontaneamente, sem dor de maior.
Mas a minha maior sorte foi ter encontrado nas mulheres à minha volta o conforto, a solidariedade e, acima de tudo, a informação que me faltava. Nunca acreditei na regra de não contar a ninguém sobre uma gravidez até às 12 semanas e tinha contado a todas as pessoas que eram importantes para mim, entre as quais várias mulheres. E, também por isso, contei com o seu apoio e, o que foi mais valioso, com a sua experiência pessoal. Nada me ajudou tanto como esta partilha. Porque a estatística era de repente real e palpável: cada segunda mulher com quem falava tinha passado pelo mesmo e tinha uma história para contar.
Cada relato era uma história, com detalhes específicos e únicos a cada mulher e a cada perda, mas todas elas eram infinitamente mais úteis que os conselhos médicos e as recomendações oficiais, genéricos e cuidadosos, colocados de forma cautelosa para não assustar e de forma aberta de modo a respeitar a minha liberdade de decisão.
É o carácter precioso que cada um destes relatos teve para mim que me leva hoje a escrever este texto, na esperança de que possa contribuir, modestamente, para que se normalize falar nesta experiência e de que possa um dia ajudar alguém que esteja a passar pelo mesmo.
A experiência de perder um bebé é, como tantas outras em Portugal, diferente conforme os recursos de que dispomos.
Em princípio, acontece uma de três coisas: um aborto espontâneo, um aborto induzido por comprimidos que causam contrações ou, para quem a puder pagar, uma intervenção cirúrgica breve, disponível em clínicas privadas.
Tentando sempre não influenciar a minha decisão, a minha médica disse-me que, enquanto pudesse esperar, aguardar pelo meu corpo podia ser uma boa opção. Por volta das onze semanas, ao “espreitar o bebé” no ecógrafo numa consulta de rotina, foi possível estimar que o embrião tinha deixado de crescer há relativamente pouco tempo, pelo que ainda era seguro aguardar por um aborto espontâneo.
Decidi tentar primeiro este caminho, esperar alguns dias e ver o que acontecia. Mas é profundamente estranho ter um bebé dentro de nós que aguardávamos com alegria e que já não está vivo, ameaçando tornar-se um risco para a nossa saúde. Estamos grávidas mas já não estamos, como nos cartoons sobre o gato de Schrödinger.
Por isso, naqueles dias, tive muitas dúvidas sobre o caminho a seguir. Essas dúvidas eram também elas sinal do meu privilégio, de ter recursos para poder escolher, mas não foram menos angustiantes por isso. Num minuto, confiava na Natureza e decidia esperar, pelo menos mais um dia, dois, três; no minuto seguinte, enviava e-mails à médica a pedir a receita dos comprimidos e do analgésico forte que recomendavam tomar com eles, e logo a seguir planeava telefonar para a Clínica dos Arcos mal amanhecesse, para resolver o assunto de uma vez por todas e poder processar a perda, em vez de existir num limbo.
Ganhou a Natureza. Uma manhã, numa tentativa de provocar alguma resposta do meu corpo, optei pela atividade física e fui trabalhar para o jardim. Arranquei ervas daninhas, cortei a relva, arranjei os canteiros, podei a buganvília, levantei-me e baixei-me incontáveis vezes. Não aconteceu nada, exatamente como quando tinha tentado provocar o parto antes do nascimento das minhas filhas. Realmente, o trabalho nunca foi solução para nada, pensei de mim para com o Filipinho dos meus botões.
Tentei outra coisa, estranha para mim, quase esotérica, talvez o mais próximo que chego do pensamento mágico. Deitei-me na cama, coloquei as mãos na barriga e, com uma tristeza profunda mas subitamente serena, despedi-me. Daquele bebé que já lá não estava, daquela gravidez que ainda estava. Disse-lhe que teria sido muito amado, que o esperava uma família maravilhosa, que estávamos muito tristes, mas que podia ir.
Nessa mesma noite, já muito tarde, de forma tranquila e quase indolor, o meu corpo começou a expulsão. Não tentei dormir, quis ficar acordada, sentada no sofá a ler um livro, não me recordo qual. Saiu sangue, muito sangue misturado com o que teria sido o líquido amniótico e muitos coágulos, alguns bastante grandes. Não os procurei ver, mas não fugi de os ver. Terá durado talvez umas três ou quatro horas. Todos dormiam e não acordei ninguém. Uma pessoa muito querida, uma das mulheres que partilharam generosamente a sua experiência comigo, disse-me que me ia sentir profundamente animal e é talvez essa a melhor descrição do sentimento de comunhão que senti enquanto deixava a Natureza seguir o seu curso, executar a decisão que tinha tomado. Estava sozinha, mas senti-me parte da humanidade, da minha espécie, do mundo, da terra.
A história de quem toma medicação para induzir o aborto, quer por opção, por ter ultrapassado o tempo, quer por ter tido um aborto espontâneo incompleto, é diferente: todas as mulheres com quem falei me relataram dores, nalguns casos muito intensas e me recomendaram que tivesse em casa analgésicos fortes. Imaginava-as em casa, sozinhas, com os respetivos companheiros ou até com crianças em casa, em dor, com indicações para ir ao hospital em caso de “perder demasiado sangue” (quanto é “demasiado sangue”? Quando desmaiarmos é porque foi demais? E se estivessem sozinhas?). Lembrei-me muitas vezes que esses comprimidos são também a resposta do Serviço Nacional de Saúde para quem escolhe fazer um aborto.
Num caso e no outro, que resposta de saúde é esta, mandar mulheres ir abortar para casa, com dores intensas, nalguns casos também com um luto para fazer, com perdas de sangue muito volumosas, simplesmente com a indicação de voltar se perderem demasiado sangue?
Passados um ou dois dias, voltei ao ecógrafo, para ver se tinha saído tudo. Faltava muito pouco. O restante deveria sair naturalmente ou com o próximo período menstrual.
Nessa altura voltei. O meu útero estava vazio, tinha corrido tudo pelo melhor. Sorte no azar, mais uma vez.
Estes controlos de que estava tudo bem, também não são feitos a toda a gente – mais uma vez, estão reservados a quem tem acompanhamento privado. Caso contrário, a recomendação é que as mulheres aguardem o fim do sangramento, que pode durar várias semanas, e que sejam examinadas apenas em caso de sintomas de infeção ou de um período excessivo sem menstruação.
Fiquei em casa sete dias depois da expulsão – eu não sabia, mas a lei portuguesa contempla uma baixa de 14 dias, paga a 100%, para a “interrupção voluntária da gravidez”, quer seja ou não voluntária (querida Academia Portuguesa das Ciências: muitas línguas têm palavras diferentes para distinguir uma interrupção voluntária da gravidez de uma perda gestacional involuntária. Não querem pensar nisso?). Tive tempo para me restabelecer fisicamente daquela perda de sangue tão significativa e para acomodar aquele luto dentro de mim. Tempo para decidir que aquela terceira gravidez, que tinha sido um acidente, era agora um projeto de futuro.
Em todo este processo, marcou-me muito a desigualdade de recursos. A detecção precoce, proporcionada pelo acompanhamento privado daquela gravidez, com espreitadelas no ecógrafo a cada consulta. A possibilidade de escolha, entre esperar pelo meu corpo, tomar os comprimidos ou pagar a intervenção cirúrgica. A possibilidade de pagar também para descobrir o que havia de errado com aquela gravidez, que recusei porque não me quis sujeitar à tarefa de tentar recolher os restos do embrião para análise genética e que no SNS é assegurada apenas em caso de abortos espontâneos repetidos, salvo erro ao terceiro. O acompanhamento pós-aborto. Ter um emprego que me informa da existência de uma baixa que desconhecia e me incentiva a gozá-la.
A resposta do Sistema Nacional de Saúde ao aborto espontâneo precisa de ser melhor para que esta desigualdade seja menor. O SNS devia assegurar a escolha, como asseguram os sistemas de saúde em vários países, e a celeridade do procedimento cirúrgico, caso seja essa a opção da mulher. Devia permitir a expulsão com acompanhamento médico ou em ambiente hospitalar a quem o desejasse, mesmo que fosse apenas um auxiliar médico para nos segurar na mão.
Devia incluir, para lá de qualquer dúvida, acompanhamento após o aborto e uma resposta ao nível da saúde mental. E, no meu entender, devia avançar com a análise genética, pelo menos no caso de primeiras gravidezes, logo à primeira repetição.
Um dia, quero muito juntar-me a outras mulheres para levar estas propostas, ou outras que entendamos melhores, como petição à Assembleia da República.
Apesar das estatísticas, quando isto me aconteceu tive uns minutos de dissonância cognitiva, uma certa dificuldade em acreditar. Que estava realmente a acontecer, que era definitivo, que me estava a acontecer a mim.
A teoria do viés otimista (optimistic bias) descreve a nossa tendência para, apesar de conhecermos as estatísticas, subestimarmos a probabilidade de nos acontecerem coisas negativas. É, claro, uma manobra genial da evolução, de contrário viveríamos num estado de preocupação permanente e as gravidezes, já por si tantas vezes marcadas pela incerteza, deixar-nos-iam sempre em estado de ansiedade aguda.
Mas neste caso, mais do que o viés otimista, julgo que a principal culpada da minha surpresa foi esta espécie de conspiração do silêncio, que recomenda logo desde o início às mulheres que escondam a gravidez para depois não terem de contar às pessoas que afinal não correu bem.
Não duvido que, para muitas mulheres, silenciar esta perda seja uma escolha afirmativa. Porque é uma perda profundamente íntima e, claro, dolorosa. Acima de tudo, não quero que leiam neste meu texto um apelo a que partilhem o que não querem partilhar. Ninguém deve e nem sequer pode exigir-vos as vossas histórias.
Mas pergunto-me se todas nós escolheríamos sofrer uma perda gestacional de forma tão privada se este não fosse um assunto tabu. Acredito que não e estou convicta de que este tabu nos prejudica e trabalha contra nós.
Por isso, as minhas últimas palavras deste texto vão para todas as mulheres que passaram pelo mesmo e que partilharam essa experiência comigo. Mulheres que conheciam intimamente a dor por que estava a passar. Mulheres que sabiam o que me ia acontecer, fisicamente, e não se envergonhavam de mo dizer. A cada uma das que me contaram como foi com elas, a minha profunda, profunda gratidão. Às autoras dos relatos que encontrei na internet, a minha gratidão também. Sem elas, mesmo com a família do meu lado, com um parceiro inexcedível e com uma médica à distância de uma chamada, ter-me-ia sentido completamente no escuro.
Nota: este é um relato pessoal. Nenhuma informação contida neste texto deve ser lida ou interpretada como um conselho médico.
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Junho de 2022