Auscultador_Telefone_azul

Pai

Entorno-me, torturo-me, afogo-me em ternura. O peito dói-me como se tivesse um torno a apertar-me as costelas, as mãos tremem-me e não sei o que fazer com elas. E agora, pai? Onde vou pousar todo este carinho, todo este amor que, de tempos a tempos, me esqueci de quão grande ele era? Diz-me, pai Afonso. Tu que me ensinaste sempre tudo e tinhas respostas prontas para as perguntas mais difíceis, estás tão profundamente calado. Nunca foste de discursos nem de tiradas, preferias guardar as frases para o momento certo em que elas produziam efeito. Tique de juiz Conselheiro na hora da sentença, talvez. Mas este problema com que me debato não sou capaz de resolvê-lo sozinho, desculpa. Porque, bem vês, a ternura não é minha, não posso andar por aí a distribuí-la como bodo aos pobres. É tua, tão inteiramente tua, foste tu que a fizeste germinar naquele lugar que ninguém conhece mas muitos chamam de alma, contigo aprendi que Mahler compôs Kindertotenlieder com lágrimas de meninos mortos, foste tu que me ensinaste que quando duas pessoas andam pela rua de mão dada é preciso que uma delas aperte com força para mostrar o que é amar. Acho que a última vez que te apertei a mão, com força como tu dizias fundamental, a senti tão frágil e tão fria que precisei de te pegar ao colo, apertar-te contra mim, fazer-te adormecer no meu ombro tal e qual tu fazias comigo quando, na escuridão da noite, eu acordava suado, em pânico, horrorizado com todos aqueles seres informes que invadiam os meus sonhos. Desculpa, pai! Desculpa, se podes desculpar-me… Desculpa não te ter dado o prazer de ter sido como todos vocês Joaquim e Afonso, e Joaquim e Afonso antes de mim… Um magistrado de província,  nunca passaria disso e envergonharia o teu nome de sábio único do Direito. Desculpa tudo, eu sei lá o quê, se estou completamente perdido na complexidade deste universo que não pode existir sem ti, sem o teu matemático telefonema da uma e meia, sem a paciência com que suportaste a minha rebeldia, sem a tua voz de melodia inconfundível a conduzir-me para lá dos horizontes. Tinhas a mão tão fria, pai. Mão de velho, ossuda, mas com esses dedos de feltro que precisava, neste momento, que me limpassem com essa tua magia de teres sido o melhor pai do mundo, as lágrimas que me correm pela cara e tornam turvos os parágrafos que escrevo. Desculpa pai, nunca ter conseguido estar nem perto da tua verticalidade e da tua imensa grandeza como homem. Só que dessa, todos puderam ter sido testemunhas. Eu, como teu único filho, sou aquele que conheceu o privilégio ímpar de te ter como pai. E não te divido com ninguém. Foste sempre a parte mais nobre de mim. Eras tu aquele para quem tentava pedalar a bicicleta sem cair. E agora que resolveste ir descansar e fechaste os teus olhos de um verde transparente, fiquei sozinho como nunca me senti até agora. Amanhã mesmo, prometo-te, vou tirar as rodinhas da bicicleta. E não te preocupes, não te angusties: vais ver que já aprendi a andar sem elas. Só continuava a fingir para que não me deixasses ir por aí fora, para algum lugar onde não estivesses. Estás a ver? Tal e qual agora no planeta Terra.

_

Dedicado ao Juiz Conselheiro Jubilado Afonso de Azevedo Pinto e Melo (1935-2022).

Relacionados

Simpatia Inacabada #10
Filosofia e História
Alda Rodrigues

Simpatia Inacabada #10

APANHAR AMORAS #2   Tudo existe para se transformar em palavras? Nós próprios podemos ser só respiração que deseja transformar-se noutra coisa. Em vez de falarmos em voz alta, murmuramos, como a água a correr, os ramos das árvores ao vento, as abelhas e outros insectos. Música do sentido? No

Ler »
 Meia-de-Leite Escura Em Chávena Escaldada
Literatura
Renata Portas

 Meia-de-Leite Escura Em Chávena Escaldada

Um ninho de mafagafos Tinha sete mafagafinhos Quem desmafagafar o ninho de mafagafos Bom desmafagafador será   Brown noise, white noise. Estudar categorias, doenças, falhas. Ler o mundo como quem lê um furúnculo. Gostar do gesto da escrita e querer apagar tudo que se escreve. Medir os dias como quem

Ler »
Continuo sem notícias do Pico Ramelau
Literatura
Afonso de Melo

Continuo sem notícias do Pico Ramelau

De cada vez que o Telejornal fala de Timor, seja lá pelo que for, fico à espera que me falem também sobre o Pico Ramelau, há que tempos que não tenho notícias do Pico Ramelau, às tantas já toda a gente se esqueceu da importância que tinha o Pico Ramelau,

Ler »