Marta_Lanca-2

Aprendo depressa a chamar-te de realidade. Carta de São Paulo

Em 2017 passei uma temporada em São Paulo, 20 anos após ter vivido em Paris, um ano e pouco antes do desastre Bolsonaro, entre o impeachment da Dilma e o golpe baixo do Lula preso. Escrevia-se e gritava-se muito “Fora Temer”, o ambiente era politicamente sinistro, não imaginava que podia piorar tanto. 

1. Troca de casas entre amigas, apartamento em espelho Penha de França vs. Santa Cecília, com quarto e brinquedos para criança e livros que apetece ler. Nova morada: Rua Tupi, quase a chegar à Barra Funda, terminal e princípio da cidade que liga centenas de destinos, e acolhe o Memorial da América Latina, complexo pensado pelo antropólogo Darcy Ribeiro e arquitetado por Oscar Niemeyer – espanto com a ousadia dos edifícios, e as veias ensanguentadas do continente na escultura Mão.

A nossa filha tem um ano e aprendeu a andar mal chegámos à cidade repisada por milhões. Não foi um difícil começo, diria, o Brasil tem esse efeito libertador dos medos cartesianos. Ganhou plena confiança precisamente no Minhocão que, ao domingo, para paulistanos carentes de praia, faz as vezes de Calçadão, apesar da omnipresente poluição, com ou sem carros. Nesse imenso viaduto caminham, correm, convivem, bronzeiam-se, anicham-se, lambem gelados e outras línguas. O meu orgulho pela passagem fundamental na vida da filha – andar sozinho, irreversível autonomia humana – é tão intenso como o temor dos carros à beira da estrada. 

[Se agregassem os pensamentos aflitos e místicos de uma mãe, surgia um novo planeta.]

Vizinho de Santa Cecília, o bairro Higienópolis, cujo nome fala por si. Entre casarões, antigas chácaras de fazendeiros de café, bastantes judeus ortodoxos de quipás, trancinhas, óculos, saia comprida e peruca, vão surgindo prédios apalaçados, torres de nome europeu, coberturas greco-romanas, relva ou heliportos no topo de 30 andares, portões de rococó, jardins cuidados e fontes jorrantes. 

À entrada desses prédios, o segurança de fato e gravata acena numa casota de comando. A babá negra e latina passeia o filho dos brancos, colocando-lhe o sapatinho caro, o queijo no pão sem glúten, aprisionada às suas birras, lembrando o seu moleque, que a essa hora regressa da escola lá na periferia e só poderá abraçar domingo. Os donos de carrões de marca saem das garagens e atiram um “Bom dia”, um “Boa tarde”, um “Até mais” ao guarda, à babá, à cozinheira e à faxineira, todo um team que protege a propriedade alheia. Ao fim do dia, regressam aos mesmos portões e garagens, fechando-se nos medos, no jacuzzi e nas proteções das grades, do guarda, babá e faxineira. Exibem até carinho por essas figuras, como se fossem da família, tal como passeiam cachorrinhos e cachorrões na quadra da sua rua. 

Primeiras lições: Os olhos azulados e peles claras dos patrões contrastam com a pele mestiça e negra dos serviçais. É preciso alimentar a ameaça e a insegurança para justificar o aparato securitário. Viver em segurança significa viver com violência. Para manter um certo estilo de vida é provável que se tenha roubado muito.

2. No boteco, estanco o frenesim da rua num olhar ruminante. Em frente, a paragem de ónibus sob o Minhocão, ligando leste oeste do município, rumo às dores periféricas. Duas horas para ir, três para voltar, extração de valor permanente, avanço para o nada e perda de si. Entre o boteco e a rua, o ar circula sem paredes, o ar circula entre a garoa. A sua força centrífuga acontece quando o garçon conta:

— Venho de uma vila do interior do estado, mas não fica longe do progresso. 

Ponho uns likes em statements de moral requentado. Leio Haroldo Campos escutando o tal garçon. Escorrem palavras com o suco laranja-manga, e não reparo nas cabines da Oi nem no vendedor de acerola, jabuticaba e outra fruta meio poetizável. Não reparo no oleado do vendedor, mas sinto o ar que circula entre a garoa e as pessoas que entram e saem do boteco. 

Sentados e pachorrentos, uns machos cortam o churrasco de carne chamuscado. Vozes roucas de cachaça e tabaco deixam cair expressões como “né, velho?”. O assador, boné do Ronaldinho Gaúcho de lado, conversa com um jovem iraniano, que veio para Sampa por causa da guerra do Irão-Iraque e vende tapetes importados. Outro, talvez na categoria de pequeno empresário, dá um “chega-pra-lá” a algum cobrador pelo telefone enquanto devora a sua bisteca e o caldo de feijão. 

Fala-se mais do governo na net do que nos lábios lilases da moça sentada à janela. Porém, a política está nos gestos dos que servem, nas carroças-papelão dos catadores, no trans que dorme no chão. Está na dondoca sedada que ostenta a sua ascendência europeia, o seu património imobiliário, os bons colégios dos filhos. Pão de queijo e o capuccino, antes do treino na academia e do encontro com amigas no Clube. Em Não existe amor em SP, o Criolo canta que “os bares estão cheios de almas tão vazias / a ganância vibra, a vaidade excita / devolva minha vida e morra / afogada em teu próprio mar de fel /aqui ninguém vai pro céu”. 

Penso nas figuras do povo de Siqueros, Cavalcanti e Júnior: índios (os de origem), negros (os escravos), caipiras (os neorrealistas). E a cada garfada da virada paulistana, juntam-se os saqueadores de recursos, achadores e o berço das elites. E ainda os italianos, japoneses, sírios e holandeses, tugas, os da padaria, reis, bandeirantes, tudo misturado.

3. Fico preocupada com o facto de mais um dia acontecer na Pauliceia. Megapolis fluida, maior economia da América Latina, máquina de faturação e de consumo de ideias, arquivo de gestos em vertigem. Milhares de descargas, brigas ciumentas, talvez sem sangue, quilos de comida dos buffets, transações e registos, fios elétricos e 300 carros a cada volte-face. Eis-me na família anónima das grandes cidades onde se concentram milhões de interesses, insanidades, esforços inglórios mas também o ar ousado e comprometido nos rostos dos grandes aglomerados.

A cidade hiperdimensionada deixa-se decifrar, efervescente, por obras, juízos, sentidos e ritmos dementes. Hieróglifos em parkour confundem as partes e o todo. Não permitem distinguir gaúchos e cearenses, açougueiro e curador, síndico e banqueiro, amante e criança, babá e cientista, metro e autopista. Cafajeste. O da novela ou o pai da amiguinha? 

Não há como não ser seduzida pelo charme do concreto e pelo monumental dos auditórios, atravessando a cidade subterrânea de metro, os mil túneis e avenidas em mobilidade uberizada, os passeios para cima e baixo, esquinas à esquerda e direita. Agitação yuppie no Centrão, gentes com e sem qualidades na Praça da Sé ou na Praça da República, travestis no Largo do Arouche, trabalhadores atropelando-se na Estação da Luz. Lina Bo Bardi no SESC Pompeia, no MASP, no Teatro Oficina. O ondulado do COPAN envolto em telas, as pastilhas caem ou são arrancadas. A boa comida asiática e as banheiras japonesas no Bairro Liberdade. Novos restaurantes abrindo a toda a hora. Editoras independentes com livros bomba a toda a hora. Aparelha Luzia, um quilombo urbano. Novas exposições a toda a hora. Numa delas, de arte dos indígenas Huni Kuin, jovens de esquerda tiram fotografias com os pajés, “— Ai, quero tanto visitar o Paraná e o Acre”, e olham de lado os famintos que devoram o catering. Festas das residências artísticas FAAP na Praça do Patriarca, Museu da Imagem e do Som, todos os lugares de cultura sustentados por privados poderosos como o Instituto Moreira Sales, Fio Cruz, Itaú Cultural, o conforto e acesso dos SescSP, a Pinacoteca e o Memorial da Resistência no antigo edifício da polícia política DEOPS, que preserva e ativa as memórias da resistência e da repressão de ditaduras. Mesmo ao lado, a Cracolândia, recente alvo da musculada operação Redenção, do prefeito João Dória (que tristemente sucedeu a Fernando Haddad), deslocando moradores de rua, prendendo dezenas de pessoas, disseminando o vício para outras freguesias. 

Não dá para encaixar mais programa, mais passeios, mais avesso do avesso do avesso do avesso, durante estes meses. Perambulamos empurrando o carrinho de bebé por avenidas, ruas e praças, escadas rolantes do metro, mercados, regressando ao final do dia, com o cansaço da multiplicação de estímulos. À chegada a Santa Cecília, Skol gelada, cachaça, porção de pastel e uma banana para a criança que arranca sorrisos a toda a gente. Olhares radiantes atravessam-nos, e seguimos à boleia do seu magnetismo. Aprendo a ver a cidade pelos olhos de uma criança pequena. Sinto nos outros uma aceitação nova, como se pertencesse a uma comunidade imaginária que me era vedada antes de ser mãe. A menina foi um sucesso na festa transe da Praça de Pinheiros, no concerto da Martinália, na Casa Mário de Andrade, bem perto da nossa, apesar de dificultar a leitura da troca de postais com a pintora Tarsila do Amaral. Correu pelas amplas salas da Biblioteca Oswald Andrade, derrubou entraves entre ela e as obras da exposição Levantes, sobre insurreições, o que é coerente. Abriu o olho às cores garridas de Vila Madalena e às obras no Galpão Videobrasil na exposição Agora somos todxs negrxs. Bebeu água de coco e brincou no Parque Areia Branca, que tem cavalos, galos, informações geológicas, um parque que serve de décor de portfólios para meninas imaginando passarelas a seus pés, na húmida floresta. Correu na relva de Ibirapuera, com skaters e b.boys exibindo saltos e audácias, e foi ao centro numa roda de samba sob a pala do Corbusier. No mesmo espaço onde pari outro bebé, o BUALA, lançado na Bienal de São Paulo em 2010.

Por mais dada que seja ao mundo, filha e pais encontram-se em regime de exclusividade. As creches da área custam 3 mil reais por mês (doi como a educação e a saúde viraram um grande negócio!), então vai connosco para todo o lado. Descobri uma sala de cinema materno onde se pode levar bebés, fenomenal voltar ao cinema de adultos. A cidade e o trabalho puxam, mas durmo pouco e lá vou conseguindo gerir enquanto ela se auto-entretém e faz sestas difíceis de arrancar. Parece que se aproxima da língua portuguesa, por enquanto responde por um dialecto estilo Pato Donald. Quer destruir o computador e o telefone, em eterna disputa de atenção com eles. São meses memoráveis no corpo da sua infância e na memória construída quando ainda não retém memória, e na aprendizagem dos pais. Seguem duas fotos tiradas pelo Pedro, onde podem constatar o enlevo. No topo da Torre Itália, a minha silhueta erguendo o bebé, com os arranha-céus cinzentos de São Paulo em fundo. Na outra, o olhar entre mãe e filha, enquanto lhe lavo a cabeça com aquelas mangueiras fininhas.  

4. A mentalidade colonial naturalizada é lição diária nas vivências no Brasil, em Portugal também, mas estar longe dos dramas nacionais [que tristes as notícias dos incêndios! ver o país ainda mais minguado e sofrido, por negligência. Se pudesse, enviava umas quantas árvores que pontuam todas as ruas de Sampa, lembrando que isto é trópico] ajuda a focar e a redimensionar o nosso papel secundário no grande guião deste tempo. Fora de Portugal, sente-se mais o pulsar do mundo, que aí adormece com doses de soporíferos institucionais. 

No Museu Afro-Brasileiro, nas salas da USP (Universidade de São Paulo) e de Campinas, aprendi mais qualquer coisa sobre o Atlântico Negro. Os debates são revigorantes, pelos conteúdos, pela força comunicativa de nunca criar barreiras, pela desenvoltura de nos pôr imediatamente em diálogo. A colocação dos temas prende-nos, a urgência e a forma de tecer considerações e, sobretudo, a atenção, o cuidado pelo outro. Como se escutasse uma história com domínio das personagens e da trama, contada por narradores desempoeirados capazes de improvisar, sem leviandade. Ninguém é intruso. Generosidade, capacidade de trabalho e predisposição para repensar as certezas. Pratica-se uma ponte feliz entre artistas e académicos sem as tricas e suspeições de Lisboa, com respeito e provocação pelas abordagens, sensibilidades de uns e de outros. Confirmo a abertura e a inclusividade vividas no ano que passei no Rio. É claro que ser europeia ajuda (e vinca os preconceitos de sul e norte), e muito, sobretudo agora que Portugal se tornou um país cool. 

Adoro as chuvas de final de tarde, limpam o ar embaçado pré-apocalíptico. Reduzem um pouco o anátema da co-presença de milhões de pessoas, a constante sensação de perder coisas, o cerco de consumo cultural e vivencial. Imagino possível traçar outra temporalidade, mas como ter mão nela? Não é fácil encontrar silêncio e contemplação, entre a exaustão da cidade e de uma criança a crescer.

Fiz uma sessão de Terapia Política na Casa do Povo, foi interessante a dialéctica one to one e encontrar o conflito político interior. Depois explico, ainda assim, o político pode ser privado também. 

Para além das forças reacionárias, cresce o número de gente alucinada que viu a luz, agarrada às palavras vazias de pastores. Fui espreitar as manifestações contra o jogo de moralidade de interesses político-económicos conservadores e evangélicos. Censuras e cancelamento, às artes e às liberdades que, por seu lado, se reafirmam e tomam o discurso, fazendo da vulnerabilidade uma força sem recuo. Ninguém regressará para os armários. Já cansa a conversa da polarização, mas este estado esquizóide traduz-se um pouco no triste espetáculo da feminista Judith Butler queimada em efígie. Enquanto falava sobre os desafios da democracia contemporânea, sobre populismos e autoritarismo, umas gentes muito irritadas gritavam, no exterior da conferência: “Queimem a bruxa!”, “O Brasil é um país conservador, contra a ideologia de género. Fora Butler!”, “Homem é homem, mulher é mulher, e aqui no Brasil você não faz o que quer!”

5. Algo se apresta aqui rumo a um descalabro maior. Dias felizes,  para mim, mas já a virar para o torto para as massas. Apesar da energia estimulante, por demais exaltante, de São Paulo, prevê-se que tudo vá dar merda. Por mais proliferação discursiva e expressiva, por mais denúncias nas redes sociais, por mais blackibloque e ruas tomadas, por mais esquerda e até igrejas bem-intencionadas, por mais resistência e contrapoder reorganizado, por mais Pan-Américas de Áfricas utópicas. Por mais firmeza na feijoada de sábado e no samba de domingo à tarde, o regime autoritário e suas hordas odiosas perderam o pudor, e apontam as espingardas a dizer “isto é meu”. A extração só agrava. Muita floresta arde. A justiça estreita o lobby com o poder. A cultura é alvo de ameaças. Legitimada pela força das armas e da grana “que ergue e destrói coisas belas”, a brutalidade social reina com impunidade. Homens franzidos e obcecados desmantelam o país. Jovens e lideranças negras, assassinados todos os dias, continuam a sê-lo ainda mais. Um louco no poder deixa morrer milhões de pessoas a pretexto de uma epidemia. Um rasto amargo de destruição, dor e bruta-montes ocos a cada esquina. 

Até que o ano de 2023 desperta com a simbologia do amor, democracia resgatada e diversidade representada. Desperta com a sensatez de assumir que “não seria justo nem correto pedir paciência a quem tem fome. Nenhuma nação se ergueu, nem se poderá erguer, sobre a miséria do seu povo.” Mas mesmo depois de um presidente democrata ser eleito e de dizer essas palavras, todo o ódio e fanatismo que já vinham de trás, apurados durante os anos do ex-presidente assassino, materializam-se na invasão de outro complexo idealizado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, mas em Brasília. Congresso, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal, sóbrio, imenso, com veias em sangue. 


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Fotografia de Pedro Castanheira.

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