James-Lee_para_Unsplash

As coisas mais aborrecidas

Antes do pódio, as que recebem apenas diplomas mas que com esforço e dedicação podem um dia vir a receber medalhas:  

 

Telemóveis 

Nos bons tempos, um tipo podia dizer com simplicidade desarmante: Telefonaste-me? Não estive em casa o dia todo. Hoje, isso é impossível porque nos puseram uma espécie de coleira com GPS. Somos linces ibéricos em extinção, os cientistas sabem sempre de cada passo nosso.  

Tenho trabalhado nas contra-medidas, claro. Ter o zingarelho desligado não serve porque depois o círculo próximo dá-me na cabeça: És algum eremita? Não atendes? Olha que não há manteiga.  A alternativa passa por organizar a lista de contactos e identificar bem os agentes infecciosos. Esses não os atendo, mas sobram os agentes duplos e os casuais. Os primeiros são aqueles insidiosos que não nos costumam aborrecer mas que em determinado dia resolvem contar-nos a infância; os segundos, não fazendo parte da lista de infecciosos, atendo-os desprevenido. Certa vez uma mulher de uma empresa de segurança privada meteu na cabeça que eu era o César e ligava-me duas a três vezes por semana sobre turnos e horários. Bloqueei-a, mas a agente dupla mudava de número. 

Os emojis e os GIF (é assim, não é ?) não me incomodam nada. Vejo-os como os chinelos de praia enfiados nos pés de gente no Inverno. Si les gustan, buen provecho

 

O Ano Novo 

 Acoplado ao bordão ano novo / vida nova. Só não vai ao pódio porque é sazonal, mas é entediante ao ponto de um gajo querer fazer scones. A começar pela esperança no novo ano. Não me apedrejem já. Nada tenho contra a esperança, essa coisa com penas como dizia a Dickinson. Se a querem ter, como a urticária ou a amigdalite, pois que a tenham. O problema é que no meu trabalho as pessoas vêm com essa cantilena. Lá tenho eu de explicar que o ano novo tanto pode trazer o euromilhões como um cancro no fígado. Não pensemos nisso, dizem elas, não seja assim

Não penso nada. O ano novo é um Kalahari de pensamento. Conheces os Glui, do Kalahari central? Eu também não. Falam Khoe, da família linguística Khoe Kwadi. Percebeste?  Pois é isso, não compreendo a linguagem do Ano Novo. 

 

Vamos então ao pódio. Terceiro lugar: 

Conversas sobre bebés 

Pode ser sobre crianças. Como sou velho, associo-as a mulheres, mas é possível que hoje em dia os homens participem. Tenho (tinha) cinco irmãs mais velhas. E elas tinham amigas. Que tinham bebés. E eu era garoto e mais tarde jovem, por exemplo no areal da Figueira da Foz.  Se garoto, estava de castigo na barraca; se jovem, estava de ressaca na barraca. E por Alá… elas não se calavam. O horário das mamadas (ria-me sempre à sacana), o Miguelinho que acordava a não sei que horas, a Joaninha que tinha a extraordinária (para elas) mania de adormecer antes do banho. Enfim, a lista tinha a extensão e o interesse de um relatório de um urologista sobre a fimose dos prepúcios. Quando os meus filhos nasceram, revivi tudo. O eterno retorno é tramado. 

 

Segundo lugar: 

O encontro fortuito com alguém que já não vemos há muito tempo 

Se não vemos a pessoa há muito tempo, boas razões existirão. Não se trata de amigos ou parentes que foram sequestrados na Guiana Francesa e nos quais pensámos, saudosos, ao longo dos anos. Não. Trata-se de chatos.  

Como é inevitável, a pessoa começa por dizer “Já não te vejo há tempo, estás bom?”. Antes que nos ocorra o segredo da teledeportação, ela, qual aranha sabida, já começou: “Olha, eu ando…”. E o que também começa é a minha miséria. 

Num mundo civilizado, a conversa, por exemplo num supermercado, seria como o sexo conjugal: de circunstância, breve e eficiente. É claro que eu esqueceria todas as actualizações biográficas entre o corredor dos detergentes e a peixaria, mas o trabalho estaria feito. Em vez disso, obrigam-me a uma tortura impiedosa. Tenho aperfeiçoado a técnica do remate final. Uma que tem corrido benzito é deixar a pessoa falar sem interrupção e depois, com um esforço titânico, fazer um grande sorriso, abraçá-la e dizer-lhe: “Vá, não te chateio mais, tudo de bom”. Vou para o Inferno de Dante, eu sei, para o círculo Sexto, junto ao túmulo do papa Anastácio que reabilitou o herético Fontino (o tipo que admitia a natureza apenas humana de Cristo).  

 

Primeiro lugar 

Os almoços familiares  

Ou da empresa. Ou da escola. Não me interpretem ainda pior: exceptuando um caso ou outro, gosto da minha família. E do pessoal da clínica onde trabalho. Sobretudo quando regresso a casa. Na escola, também gostava dos meus colegas. Há mais ou menos mil anos.  Gosto tanto desses almoços que ficaria enternecido se me mostrassem as fotos dois ou três anos mais tarde.  

Entremos então no salão do almoço. Em menos de cinco minutos, alguém me está a fazer a historiografia dos triglicerídeos dos últimos cinco anos. Por que razão os familiares se imaginam num congresso de medicina familiar não sei, mas sei que se imaginam. O torpor instala-se devagar como os diabetes da prima Gabriela que saiu agora mesmo de ao pé de mim. O álcool não é solução. Experimentei uma vez começar a dar nele e apanhei um concunhado, ou sobrinho por afinidade ou coisa parecida, que se juntou e acabei nauseado com as suas histórias de infância. 

Outro problema gravíssimo é o registo de identificação. A minha família é enorme, parece saída de Contrada Calamia, em Cosenza. Eu já não sei quem são os meus sobrinhos, sobrinhos-netos e respectivos consortes e descendência. De modo que me contam histórias de pessoas que não conheço e pior: apresentam-mas. Eu sou o vecchio zio que eles conhecem não sei como. Espíritas de um raio. 

Relacionados

Simpatia Inacabada #10
Filosofia e História
Alda Rodrigues

Simpatia Inacabada #10

APANHAR AMORAS #2   Tudo existe para se transformar em palavras? Nós próprios podemos ser só respiração que deseja transformar-se noutra coisa. Em vez de falarmos em voz alta, murmuramos, como a água a correr, os ramos das árvores ao vento, as abelhas e outros insectos. Música do sentido? No

Ler »
Dicas de beleza para futuros falecidos
Boa Vida
Rafaela Ferraz

Dicas de beleza para futuros falecidos

Há duas fases da vida em que se torna absolutamente essencial ter uma rotina de cuidados de pele: a vida propriamente dita, e depois a morte. Felizmente, a indústria da beleza fatura cerca de 98 mil milhões de dólares por ano nos EUA, a indústria funerária 23 mil milhões, e

Ler »
George Carlin e a Verdade na Comédia
Artes Performativas
Pedro Goulão

George Carlin e a Verdade na Comédia

“Dentro de cada cínico, existe um idealista desiludido” Quando comecei a escrever na Almanaque, o Vasco M. Barreto pediu-me que não escrevesse sobre o estafado tema dos limites do humor. Aceitei, mesmo tendo em conta que isso era um limite ao humor, pelo menos o meu, e que alguns números

Ler »