Uma breve exploração dos preconceitos na minha busca de alguma forma de espiritualidade
1. JoutJout Prazer. É esse o nome do canal Youtube de Julia Tolezano da Veiga Faria, a conhecida vlogger que me levou ao budismo brasileiro. Tudo começou quando uma amiga me sugeriu um vídeo em que Jout Jout (como é conhecida) lia um livro ilustrado. Sugado pelo vórtice do mecanismo de recomendações do YouTube, em breve dei por mim a assistir a uma conversa da vlogger com um homem jovem que tomei por actor de alguma novela. O entrevistado chamava-se Gustavo Gitti e, pesquisando, fiquei a saber ser um dos organizadores de um projecto chamado “O Lugar“.
Clique puxa clique e, quando dei por mim, eu tinha criado uma conta nessa “comunidade online de transformação”. Em breve descobri tratar-se de um projecto de divulgação de práticas e ideias budistas (apesar de evitarem o uso ostensivo do termo “budismo”).
Background relevante: Tal como a Stig Dagerman, não me coube na herança qualquer deus. Cresci sem exposição – ou inclinação para – a religião ou sequer aquele mais difuso universo da “espiritualidade”. E, nos cerca de quarenta anos que se seguiram (a aritmética nesta frase é difícil, porque depende da idade a que consideramos que isso de “crescer” termina), nada mudou nessa frente excepto o que relato neste texto.
Após dois anos a frequentar intermitentemente O Lugar, posso dizer que encontrei aí uma “proposta” religioso-espiritual que me cativou. Numa primeira abordagem, isso poderia talvez ser explicado pela qualidade do site, que combina conteúdos bem-pensados, um elenco simpático e frequentes sessões com convidados.
Ou talvez eu me encontrasse num momento particularmente “receptivo” e isso explique a minha experiência – também é impossível excluir tal hipótese. Mas creio que a história pode passar por outros elementos. Especialmente se a contarmos da perspectiva de alguém que realmente muito pouco sabe sobre o budismo, como é o meu caso. É isso que farei em seguida.
2. O budismo é originário da Ásia e, por isso, para muitos de nós(2) tem algo de exótico. Para quem nunca adoptou (ou escolheu afastar-se de) uma das tradições religiosas já implantadas na sociedade em que cresceu, esse exotismo é, só por si, altamente conveniente e até facilitador de uma aproximação. A linguagem e a iconografia são distintas daquilo a que, ao crescermos, aprendemos a chamar de “religioso” (no caso de quem cresceu em Portugal, isto traduz-se por “católico”). Não há qualquer associação à imagem bafienta dos padres; nem ao legado em tantos aspectos opressivo da Igreja Católica; nem aos adultos “beatos” que em criança nos entediavam. O mero facto de vir de um ponto remoto, de ser outro, torna as coisas mais fáceis para alguns de nós. É como vivermos numa cidade estrangeira: simplesmente esse lugar ser-nos estrangeiro pode tornar a nossa relação com a cidade mais leve, pois não carrega tanta bagagem acumulada como a relação que temos com o sítio de onde viemos.
3. Mas o exotismo não é tudo. Na versão em que chega até nós, o budismo já foi objecto de um longo processo de “ocidentalização”. Uma parte importante dessa ocidentalização aconteceu nos Estados Unidos durante a segunda metade do século XX, onde norte-americanos sem ascendência asiática “descobriram” o budismo como alternativa espiritual às tradições religiosas em que tinham crescido.
O deus cristão tinha morrido, por isso ao importar uma tradição religiosa-espiritual foi conveniente que o budismo não tivesse um deus tão saliente. No entanto, não faltam elementos sobrenaturais nas (variadas) tradições budistas: numerosos espíritos e demónios, a reencarnação e o karma, o binómio céu e inferno. Ao se “(norte-)americanizar”, estes elementos foram com frequência recebendo menor ênfase. Especialmente ao lermos materiais introdutórios destinados a curiosos e recém-chegados, é possível tomar o budismo (norte-)americano por uma tradição quase inteiramente desprovida de crenças em elementos mágicos.(3) Ora, para quem cresceu ateu ou agnóstico isto é muito apelativo. Dá-nos a impressão de termos encontrado uma tradição religiosa que não requer que subscrevamos, de antemão, um conjunto de crenças absurdas para sermos admitidos.
4. Este é, no entanto, um texto sobre preconceitos nesta “busca” e, mais especificamente, sobre as vantagens daquilo a que chamo (com ligeireza) budismo brasileiro. Já é, por isso, hora de deixarmos os Estados Unidos e rumarmos a Sul. Quando cheguei a’O Lugar, já vivera por longos períodos na América do Norte. Durante esse período, em múltiplas ocasiões lera e escutara sobre o budismo. No entanto, aquilo nunca me fez “clique”.
É aqui que entra a bagagem de preconceitos que, consciente- e inconscientemente, todos carregamos dentro de nós. Ao ouvir norte-americanos anglófonos a falar sobre o tema, os meus preconceitos sobre matérias tão díspares como os Estados Unidos, a própria ideia de “espiritualidade” e a sua associação ao movimento new age e à contra-cultura dos anos 60 intrometiam-se. É irracional (e quase embaraçoso escrevê-lo), dado que passei anos prazerosos e estimulantes nos EUA que considero formativos a tantos níveis, mas mesmo hoje essa salgalhada dentro de mim impede-me de usufruir plenamente de escutar a Sharon Salzberg no On Being.
Tentar ir directamente “à fonte” poderia ser uma solução. Alguém cujo interesse pelo budismo não chega ao nível de estudar uma língua asiática está obviamente limitado aos mestres que já habitam uma esfera linguística de uma língua que essa pessoa domina. Recordo uma tentativa minha nesse sentido: participei num retiro online com o celebrado mestre do budismo tibetano Mingyur Rinpoche. Vestindo as características roupagens avermelhadas num décor de estilo asiático e falando directamente para a câmara num inglês com um forte sotaque, as aulas de Rinpoche pareciam-me desenhadas para seduzir uma audiência “ocidental”: um discurso simples e metáforas envolvendo a subida e descida das bolsas ou o desejo de comer mais pizza. Também essa combinação me gerava uma resistência que tinha origem em algum ponto difícil de identificar. Creio que parte de mim suspeitava estar a ser o consumidor de uma experiência disneyficada.
Para quem está ciente de que a autenticidade não existe, a pergunta relevante não é se algo (seja uma experiência ou uma pizza) é “autêntico”. A distinção importante é se aquele resultado, em particular, das incontáveis recombinações e miscigenações que compõem a vida é… feliz. Por outras palavras, se “funciona” ou não. E, para mim, assistir em 2022 a homens asiáticos de cabeça rapada e vestidos de hábito usando a imagética do capitalismo tardio ao discursarem para o seu meio milhão de “seguidores” no Youtube não funciona.
Foi, por isso, uma felicidade descobrir uma combinação que funciona para mim: um projecto focado em popularizar, num registo leigo e acessível, o budismo em português do Brasil. Ao ouvir os oradores d’O Lugar discorrer online sobre as seis paramitas ou o samsara, as velhas resistências internas a ensinamentos milenares sobre a natureza da existência (ou a conduta ética ou tantos outros temas) dissolvem-se. Embaraçosamente, creio que várias associações inconscientes ao sotaque brasileiro têm um papel importante. Será possível que memórias subterrâneas das novelas com que cresci na televisão e associações à “ligeireza” da MPB basicamente evitem que as discussões n’O Lugar sejam por mim sentidas como de endoutrinação? E será que várias ideias feitas sobre uma suposta propensão latino-americana ao sincretismo religioso também me ajuda ao escutar pessoas nascidas e residentes na América do Sul apresentarem, de maneira apelativa, ideias oriundas da Índia e do Tibete (ideias essas que –julgando pelos textos e outros materiais discutidos n’O Lugar – com frequência “fizeram escala” na costa ocidental dos Estados Unidos a caminho do Brasil)?
Sei que a cultura brasileira é, também, tantas outras coisas. (Como credencial, invoco a minha condição de leitor e entusiasta da fenomenal Piauí.) Ao mesmo tempo, parece-me que certos preconceitos, ainda que inconscientes, sobre o Brasil “neutralizam” outros preconceitos que tenho sobre espiritualidade e religião. É um pouco como, ao simplificarmos uma fracção, cancelar o mesmo valor do numerador e do denominador, o que facilita chegarmos ao resultado. E, nesta aritmética de ideias feitas e associações inconscientes, o que resultou para mim foi uma forma de explorar um universo que – na sua versão duplamente americanizada – me surge como simultaneamente palatável, profundo e genuinamente enriquecedor.
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[1] Referência às quatro “brahmavihārās”, também frequentemente traduzidas como “as quatro incomensuráveis”, que identificam as quatro virtudes centrais na tradição budista.
(2) Escrevo aqui da perspectiva de quem cresceu na Europa ou nas Américas e sem ter ascendência asiática.
(3) Este processo de depuração do sobrenatural, quando assumido frontalmente e levado ao seu extremo, produziu o chamado “budismo secular”.