Há um capítulo de Venomous Lumpsucker, o novo livro de Ned Beauman, em que o panda Chiu Chiu — último da sua espécie — morre, e todas as crianças da China ficam inconsoláveis.
“Em termos de pura tonelagem emocional”, escreve Beauman, “a morte de Chiu Chiu pode ter sido uma convulsão sem precedentes na história da humanidade, o maior número de pessoas multiplicado pela mais profunda sinceridade”.
Após o frenesim habitual de gemidos e mortificação, o partido comunista chinês garantiu que jamais permitiria outra tragédia idêntica, mas essa promessa foi logo ultrapassada por um engenhoso sistema de créditos assente nas amenidades do mercado livre, que permitia às empresas destruir o habitat de qualquer animal em risco desde que pagassem o preço correspondente à cotação do momento. Ou seja, a retórica ambientalista serviu para criar uma indústria da extinção.
Este arranjo ficcional de Beauman satisfez-me imenso, mas demorei alguns dias a perceber porquê: era um ótimo retrato da minha carreira de publicitário.
Passei duas décadas entre gente que dá cabo do mundo mas acredita com singeleza que o está a salvar. Mercadorias que há menos de uma geração eram compradas a granel são agora envolvidas em plástico e despejadas na vala comum da nevrose consumista, enquanto pessoas como eu compõem ditirambos à sua “sustentabilidade”. Banqueiros, inebriados pela ganância, que provocam o colapso financeiro de dois continentes, sugam os recursos dos Estados a pretexto de evitar “efeitos sistémicos”, arrastam milhões de pobres para um sofrimento indizível — enquanto pagam aos seus cúmplices bónus pornográficos, — são incensados pelos media, filmados em escritórios glamorosos de infernos corporativos, venerados como patriarcas ternos, pilares da moral, timoneiros confiáveis que perscrutam com um olhar benevolente o futuro das nações. Tudo isto se consegue graças aos nossos préstimos de “profissionais de comunicação”. Somos os coveiros do planeta, e, ao ter encontrado a minha experiência tão bem caracterizada num livro, senti um apaziguamento raro a que chamarei o conforto da autenticidade.
Em geral as coisas autênticas só se revelam por contraste, num paroxismo de hipocrisia. Lipovetsky escreve sobre o assunto numa obra recente (Le Sacre de l’authenticité, nrf, 2021), invocando alguns dos seus precursores. Ele recorda-nos que à era da “substituição do ser pelo parecer” (vénia a Debord) sucedeu um tempo de simulação total (vénia a Braudrillard), que eliminou os referenciais do mundo físico, tornando plausível a ideia de que vivemos em simulacro permanente. Apesar disso, afirma, nunca uma ética da autenticidade se impôs de um modo tão consensual como hoje.
A expansão social dessa exigência íntima — “sê tu próprio” — aconteceu em três fases: na primeira, inaugurada por Rousseau, a autenticidade era vivida como um ideal heróico de rejeição das aparências e do julgamento dos outros, uma sinceridade absoluta. Na segunda fase, entre os anos 60 e 70, foi uma afirmação libertária, revolucionária, utópica, de contestação dos papéis sociais que alienavam os indivíduos — um tempo que Foucault, com a sua “coragem da verdade”, representa bem. Na terceira fase, que estamos a viver, o ideal transformou-se numa tirania da subjetividade, uma autenticidade “erigida em divisa das massas (…) normalizada, integrada, institucionalizada”, que se expandiu e radicalizou para triunfar na hipermodernidade como uma rígida afirmação do “eu”, “um inconformismo de todos”.
Por esta altura o leitor já compreendeu o problema: se existe um “incorformismo de todos”, porque é que somos tão conformistas? Não era suposto resistirmos ao rebanho? A resposta mais simples talvez seja: sim, mas estamos a mentir desde o princípio.
François Noudelmann (Le Génie du Mensonge, ed. Max Milo, 2015) apresenta-nos dois bons exemplos, que ampliam o parágrafo anterior. Através do seu livro descobri que Rousseau abandonou cinco filhos enquanto era o mais sincero dos homens. O sacrifício dessas crianças, depositadas em orfanatos num tempo em que um orfanato era uma condenação à morte, deu-lhe o tempo e os recursos que lhe permitiram escrever Émile, um tratado sobre a educação.
Quanto a Foucault, dedicou a última lição no Collège de France à Apologia de Sócrates, entendida como obra que “fornecia o modelo de uma atitude filosófica exemplar, (…) uma performance que expõe e realiza a essência da verdade.” Significativa foi a circunstância de se tratar ali da “verdade perante a morte”, o que, no derradeiro seminário de Foucault, arrastaria sempre um pathos incontornável, uma reverberação capaz de se projetar no futuro quer os seus discípulos a reconhecessem ou não.
E poderiam não reconhecer? Sem dúvida. Porque Foucault tinha sida, mas eles não sabiam. O epígono de Sócrates denunciou “rumores” e levou a sua verdade para o túmulo.
Nos dias de hoje estas contradições observam-se melhor no terreno. Regressemos a Lipovetsky para invocar uma particularidade recente do relacionamento entre casais. Na obra já citada, ele conta-nos que mais de 80% dos franceses entre os 18 e os 26 anos consideram a fidelidade importante (valor muito superior ao de há três décadas, em que apenas 50% afirmavam a mesma coisa). Só que, esclarece, por outro lado a percentagem de parceiros infiéis nunca foi tão alta: em França passou de 19% em 1970 para 43% em 2014. Ou seja, nunca exigimos tanto aquilo que praticamos tão pouco.
As próximas crónicas serão dedicadas a aprofundar este tema: o das causas, efeitos e manifestações da mentira que erigimos em critério ético universal, e à qual chamamos autenticidade.