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O “Problema” da Deficiência

“Qual é o seu problema?”– perguntou-me, quando percebeu que eu pertencia àquele grupo, num misto de admiração e curiosidade pela invisibilidade da minha deficiência. 

Fiquei ali a remoer no facto de a jovem psicóloga usar de forma leviana a palavra, com toda a carga emocional e simbólica que a mesma acarreta e toda a contribuição para o estigma histórico desta comunidade. 

Depois fiquei a cismar na quantidade de vezes que as pessoas, ao saberem que sou uma pessoa com deficiência, me dirigem expressões análogas: “qual é o teu problema?”, “quais as limitações do teu corpo?”, “qual a tua doença?”, “isso tem cura?”, misturando conceitos que não têm de coexistir, confundindo deficiência com doença, inclusão com reabilitação e reabilitação com cura. E ocorreu-me que apesar de nós, pessoas com deficiência, sermos a maior minoria do Mundo, continuamos a ser um enigma e desconhecidos para a sociedade. 

Associar a deficiência às limitações dos corpos não é novidade. Vem de sempre, isto de se acreditar que a deficiência se pode resumir à “imperfeição” dos corpos e à falta de funcionalidade dos mesmos, num modelo médico, que assume que a pessoa tem um defeito ou doença que precisa de ser curada através de uma intervenção médica. Que a pessoa precisa de ser tornada o mais “normal possível” para se poder integrar na sociedade dominante, devendo este esforço de integração ser, predominantemente, seu. 

Tradicionalmente, “o problema” associado à deficiência é projetado na pessoa, ignorando as imperfeições e as limitações da sociedade envolvente que, por sua vez, é desresponsabilizada no seu papel nesta inclusão. Como se a pessoa tivesse saído “desformatada” da linha de produção da natureza e lhe coubesse a responsabilidade de procurar cortar aqui, acrescentar ali, remediar acolá para caber o menos mal possível na forma, para encaixar o mais que puder na “norma” e assim poder voltar a entrar em circulação. 

Então, devolvi a umas das minhas interlocutoras a questão: «e você tem alguma deficiência?»« Não», respondeu-me prontamente. Convidei-a a fazer o seguinte exercício: «assumimos, então, que não tem nenhum – e usando a sua expressão – “problema” no seu corpo?». «Sim, podemos assumir» – disse-me. 

Prossegui. «Imagine que, com o seu corpo sem nenhuma deficiência, planeia sair de casa para o trabalho. Trabalha numa biblioteca do outro lado da cidade e a biblioteca fica num primeiro andar de um edifício. Acorda de manhã, com integridade nos seus membros mas, em redor da sua cama, escavaram um buraco. Coisa grande, perímetro tão largo que a extensão das suas pernas sem deficiência não permite dar um salto e alcançar o outro lado do quarto. Não consegue sair da cama, embora o seu corpo tenha toda a funcionalidade do Mundo. Depois, finalmente, alguém lhe estende uma tábua comprida que serve de ponte para transpor o fosso. Veste-se, trata de si e vai até à porta para apanhar um transporte público para alcançar o outro lado da cidade mas – surpresa! – não passam autocarros, nem táxis e não há qualquer linha de Metro nas imediações. O seu corpo não tem qualquer deficiência – repito! – mas não consegue chegar ao outro lado da cidade pelos seus próprios meios físicos porque é demasiado longe. Depois, mais uma vez, chega alguém, dá-lhe uma boleia e deixa-a à porta do edifício. Lembro-lhe que o seu posto de trabalho fica no primeiro andar mas – caramba! – que retiraram as escadas, não há elevador e, embora o seu corpo não tenha nenhuma deficiência, ainda não lhe nasceram asas que a façam alcançar o primeiro andar. A minha pergunta é: neste cenário, é o seu corpo estereotipadamente íntegro e normativo que é deficiente? É o seu corpo que tem um “problema”? É o seu corpo que a limita?»

Ela ficou calada durante algum tempo. É importante termos espaços de discussão onde podemos, finalmente, esclarecer como a deficiência reside na interação entre pessoas com corpos não normativos e as barreiras ambientais e comportamentais que impedem a sua participação plena e efetiva na sociedade, em condições de igualdade de oportunidades com as outras pessoas. 

«Na verdade», concluiu a minha interlocutora, «não era o seu corpo que tinha uma deficiência: era o facto de a mesma encontrar várias barreiras e obstáculos à sua vida que a deficientalizavam». 

Tal como, no dia a dia de todos nós, pessoas com deficiência, os nossos corpos são o que menos nos limita, são o nosso menor “problema”. 

O meu “problema” não é ter uma deficiência. 

O meu problema é continuarem a ser aprovados edifícios sem acessibilidades físicas, sem rampas, sem elevadores depois de ter saído legislação a regulamentar o acesso e que data de 2006. Que os transportes públicos não sejam acessíveis, que existam estações de Metro sem elevadores, que as rampas dos autocarros modernos da CARRIS estejam constantemente avariadas, que não haja táxis adaptados fora das grandes zonas urbanas do país, que seja preciso uma pessoa que se desloca em cadeira de rodas avisar com 6 horas de antecedência a CP para que, na hora em que pretende viajar, lhe seja disponibilizada uma rampa. 

O meu problema é que os telejornais continuam a não ter, todos sem exceção, tradutores de língua gestual portuguesa e legendagem, para que uma pessoa surda possa ter acesso ao que se passa no Mundo. O meu problema é uma pessoa cega não poder fazer compras num supermercado porque não existe tradução em braille nas etiquetas dos expositores onde consta a designação do produto e o preço. O meu problema é uma criança com deficiência motora esperar em média dois anos para receber uma cadeira de rodas do sistema burocrático da Segurança Social, muitas vezes recebendo este pedido de apoio quando o seu corpo cresceu e já não há adequabilidade. 

O meu problema é que não haja políticas efetivas de educação inclusiva, e que ninguém fiscalize o cumprimento de quotas de emprego, destinadas a pessoas com deficiência, que as empresas continuam a desprezar. Que as políticas de inclusão sócio-profissional desta comunidade estejam, na maioria das vezes, sob a batuta da “responsabilidade social” ao invés da dos “recursos humanos”, numa lógica assistencialista e caridosa e não numa lógica de direitos humanos. 

O meu problema é que a assistência pessoal esteja, em Portugal e em 2022, enquadrada num projeto-piloto e esteja apenas a impactar a vida de uma amostra de menos de mil pessoas com deficiência e que para muitos outros a sobrecarga das famílias ou, no limite, a institucionalização seja o único recurso, quando todas as políticas europeias apontam para a urgência da implementação de políticas de desinstitucionalização. 

O meu “problema” não é o meu corpo.  Na verdade, não são os nossos corpos que têm “problemas”, não são as pessoas que são deficientes: é a sociedade que nos deficientaliza

Até quando?

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