Crónica do Mindelo, fotografia de Marta Lança.

Crónica do Mindelo com uns Anos de Atraso

1. Em 2004 aterro, com curiosidade e disponibilidade, na ilha de São Vicente, Cabo Verde. Tenho 28 anos, convencida de que a alegria, inclusive a excentricidade, fermentam numa ilha, ainda que árida. Os dedos abrem-se a novos ventos e areias. Já vivi nos Açores e reconheço o poder transformador das ilhas, o seu horizonte incerto, contingente e criativo; a sua beleza presidiária. Num pedaço de terra de meio habitante por quilómetro quadrado, onde os primos são mais do que os não-primos, acedemos ao melhor e pior das relações humanas. Longe das capitais, espreitamos a condição de tudo quanto vive no mundo.

O tempo ganha novos contornos e eu entro, vagarosa e nem sempre discreta, neste canto do planeta. Traçando rotina nos caminhos, como as cabras nos montes, sigo por entre as ruas da cidade descendo e subindo as cinco avenidas, saudando a mesma pessoa cinco vezes ao dia: Tud dret tud dret tud dret tud dret tud dret. Piso um estúdio de novela colonial, com mercearias e drogarias personalizadas, armazém de comércio geral, Café Lisboa, Pastelaria Algarve, Café Portugal, Casa do Leão, a réplica em miniatura da Torre de Belém, o Pássaro da travessia de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Observo as casas no centro, conservadas, sobretudo as que passaram a bancos e instituições. Nos morros da ilha, chamam a atenção as casas de tambor e as casas inacabadas. Na visão panorâmica, o cimento colado à terra junta-se ao azul do céu e da baía.

2. Acácias tímidas, campos de futebol empoeirados, vendedores da rua Ribeira Bóte, legumes mirrados, papaia e saquinhos de calabaceira. Admiro os braços firmes dos pescadores e o cheiro a atum no mercado do peixe. Invejo a ausência de pressa na vida dos indigentes, ou dos silenciosos jogadores de ouril, tentando comer o maior número de grãos ao adversário. Passeio pela Praça Estrela, abanando a cabeça aos vendedores senegaleses que me impingem máscaras, pulseiras de corno de vaca, colares e cestaria. Uma criança aninhada no chão em posição fetal, chinelos gastos e t-shirt extra-large da caridade nem me vê passar na praça que já foi uma salina, um cemitério de vítimas de cólera nos anos 50, um campo de futebol e de cricket, uma feira popular. Estamos sempre a pisar os momentos de outros antes de nós.

Vêm ao meu encontro fragmentos de crioulo sampadjudo, como música familiar e codificada. Fofocas indignadas, pedidos para ir aos recados, zanga de um pai bêbado, risos de todas as idades. Pelas janelas abertas, soltam-se mornas de Ildo Lobo, morte fresca por todos chorada. Ecoando pela ilha, a sua voz firme, carregada de dor e ternura, lembra-me as noites lisboetas, em que os Tubarões brilhavam nas colunas do Ritz Club, B.Leza ou do Enclave.

ma morte ca solução s’el tchora um ca ta sabe dixam vive num sorriso di esperança.

3. Alugo casa junto a um pequeno quartel e a uma escola, de onde ouço os gloriosos amanhãs nas cantigas. Sou vizinha da Televisão Pública de Cabo Verde, da esquadra da polícia e paredes meias da residência do presidente da República nas estadias em São Vicente, na altura Pedro Pires, ex-combatente do PAIGC.
O apartamento é todo ele branco-telenovela: paredes, chão, armários, eletrodomésticos — só falta o piano do Imagine e o frigorífico que não chegarei a comprar. Partilho-a com uma rapariga italiana, sorridente, que ficou por mais uns anos na ilha.
Do terraço, somos vigiadas pelo Monte Cara deitado sobre a baía, desenhando os mais belos pores-do-sol, e pelo Fortim Del Rei, prisão criada em 1852, ruína prestes a virar hotel, ermo propício a encontros sexuais dentro de carros. Estendo o corpo na rede do terraço, amadurecendo-o na luz quente e nas leituras de autores locais. O céu escuro, por vezes desolador, envolve as nossas noites longas. Amigos sentam-se no chão do terraço a partilhar ideias e histórias. Todos têm muitas vivências logo aos 20 e poucos anos. Damos por nós entre cinco ou seis nacionalidades, entendendo-nos num quotidiano que tem algo de revolucionário para as respetivas vidas. Damos por nós a praticar inocentes trocas culturais nos jantares: o peixe cru do sushi é novidade para cabo-verdianos, tal como para mim o thieboudienne comido à mão em alguidar.
Trabalho muito, mas arranjo tempo para mergulho diário, descendo a avenida Ché Guevara até à Praia da Laginha. Em qualquer ponto do globo, um mergulho no mar faz vibrar em nós sensações de infância e ensinamentos muito próprios. Conjugo verbos em crioulo, combino povo de mar com boa música, deixando-me boiar em leves questões existenciais.
A diferença entre uma pedra que afunda e um barco de quatro toneladas que se mantém à superfície? Uma forma, o equilíbrio na base.
À tardinha dou um salto ao cyberclub com uma pen carregada de emails por enviar. Depois de paciente espera de ligação ao modem, é emocionante abrir as mensagens não lidas do Yahoo. Exaltam-me as promessas de amor e os relatos dos amigos. As notícias de outros lados, guardo-as na volta do correio como alimento para ruminar até ao dia seguinte.

Crónica do Mindelo com uns Anos de Atraso

4. Concentro-me na integração, desejo entender as subtilezas, poderes e modos de trabalho da terra. Inteiro-me da sua literatura e música, jornais, polémicas, figuras da cultura, política e negócios, pensamento e ação dos jovens. Faço amigos intensamente. Os semi-loucos das ruas contam comigo em momentos de aperto. A minha energia impulsiva e desbocada, que me leva anos a polir (se é que), incentiva debates e as pessoas revelam as suas questões. Os egos de artistas insuflam as penas. Fazem afirmações categóricas: Eu, eu, eu. Nós, nós. Nós somos assim, a crioulidade isto, a caboverdianidade aquilo, li di terra aqueloutro. Mais africanos, mais europeus, ilhas Atlântidas, ilhas da Macaronésia, miscigenações culturais e biológicas, a morna materializa toda uma identidade crioula, a riqueza imaterial do povo, as estratégias de sobrevivência perante a inospitalidade do lugar, as fomes, as secas, as estruturas feudais, as investidas assimilacionistas, as continuidades do projeto colonial, os chineses, a diáspora.

Eu acredito em tudo o que dizem, para logo duvidar na próxima conversa.

Embrenho nos tiques de terra pequena e circular. Pessoas que forjam carreiras políticas em gestos de quotidiano. Opressões vigiando quem foge à regra, machos negligentes como pais, ou em debandada, um mar imenso de mães solteiras. Por um lado, o juntamon e a solidariedade da comunidade, família ou vizinhança, por outro, a insuportável vigilância social.

A ilha vai manifestando seu lado psyco de quem ali fica encravado, preso às suas paranóias. A pobreza e o desemprego limitando os sonhos de sobejos jovens, obrigados a fazer-se à terra longi para estudar ou trabalhar. Quem fica em terra vive o desdobramento entre cá e lá, com o coração extensivo a relatos iludidos em perlimpimpims de sucesso. Se a hora di bai não soa, os rituais da terra e de família tomam conta da cadência do ano. Intensas festividades coletivas como a passagem de ano (São Silvestre), o extasiado Carnaval, as romarias da Ribeira Julião, o Festival Baía das Gatas na música e, no teatro, o Mindelact.

Vou a um “guarda-cabeça”, meia-noite do sétimo dia de vida de um bébé. Amigos e familiares reúnem-se para celebrar a chegada da criança, para proteger o novo membro da comunidade. Se dantes rodeavam o bebé, cantando a oração e a morna de Eugénio Tavares “Ná, Ó Menino ná”, nos terraços a festa pode ser de arromba. Pelo sim pelo não, agulhas e tesouras são ainda colocadas debaixo da almofada para cortar as cabeças de bruxas.

Numa cidade-presépio, cada membro é fundamental. Até quem pertence ao espaço por breve tempo. Que venha cada um, com os seus dotes, ao centro devotar algo.

5. Ao domingo, o mundo renasce no Cinema Éden-Park, isto é, um certo mundo americano. Passa um filme de Hollywood por semana e já vamos com sorte. A sala monumental, de arquitetura modernista bem ventilada, permite a cacofonia alquímica entre os sons da rua e os do filme. Os instrumentos de sopro da banda popular do coreto na pracinha entranham-se nos relatos do filme, feito em direto por um rapaz para outro a seu lado, ou alguém decide contar o filme por telemóvel. Impressiona-me a necessidade de se verbalizar as imagens, enternecendo na mesma medida em que irrita a experiência extremamente social de ir ao cinema.
Ao domingo, o mundo desce à Praça Nova (que já foi Praça Serpa Pinto, Praça Amílcar Cabral no pós-independência, mantendo intactos os bustos de Sá da Bandeira e do Camões). Tomada por roupas coloridas, cinturas e decotes palpitantes, ténis espelhados para a party, em cultura do hip e do hop (a música do 50 Cent está a bater), a Pracinha recebe jovens e velhos, que circulam em voltinhas para ver e ser visto. Apesar de forasteira, sou desde logo identificada e reconhecida, não posso ficar escondida debaixo da cama, é desadequado prescindir do jogo social.
No quiosque bebe-se na vanglória dos tempos passados, segundo quem os viveu, sempre melhores e mais dignos do que estes. Os tagarelas alimentam fofocas sobre políticos. Fico a saber que a presidente da Câmara se orgulha de ter tido mais amantes do que a sua idade avançada — digamos que isto apenas figura assunto por ela ser mulher. Comenta-se a nova namorada de fulano, os desentendimentos de casais, a corrupção na instituição, as empresas de barcos, as últimas eleições, a inoperância do ministro, o problema da língua na educação, alguém critica o espectáculo que estreou apesar de tê-lo aplaudido fervorosamente. Intrigas de meios pequenos que nunca acontecem diretamente com os envolvidos. Intrigas proporcionais à atenção que damos uns aos outros. O assalto à individualidade alheia e a incapacidade de crítica frontal vão-me exasperando.
Ao domingo, o mundo chega à Pracinha, e os viajantes não demoram a percepcionar o mundo a partir da pequena dimensão da ilha.

6. Nos dias de bruma seca, suspensão de poeiras do continente africano que demora a dissipar-se pelo vento, fico melancólica e com os sonhos embaçados. Finalmente chove, apenas por umas horas, e os mindelenses apressam-se a colocar alguidares, tanques e cisternas a jeito de recolher a preciosa água. Crianças brincam e dançam seminuas na praça. A ironia deste singing in the rain no Mindelo dá-se precisamente quando o meu amigo Afonso do Ó, especialista em água e seca, me vem visitar.
Aprendo a ver no mar a forma do desconhecido. Com que imagens se sonha o desconhecido? Um porto, como tudo o que une e separa, favorece o melhor e o pior do mundo. Porto Grande, entreposto comercial, abastecimento de carvão para navios, alívio sexual dos marinheiros, escala e descanso de piratas. Um porto de localização geoestratégica, base militar, emblemático nas comunicações transatlânticas, planos telegráficos e cabos submarinos (em 1874, a Western Telegraph Company amarrava em São Vicente um cabo de ligação à Madeira e ao Brasil; em 1886, conectava-se a África e à Europa continental). Ali desembarcaram outros ilhéus; portugueses e ingleses, italianos que ocuparam e negociaram na ilha. Ali desembarcaram escravizados de África, fugitivos, desterrados e clandestinos europeus, todos na festa mórbida de povoar um lugar vazio. Ali desembarcam inúmeros passageiros, velejadores e turistas. Muitos terão mudado o rumo da sua vida.

Sou uma dessas pessoas que ali muda o rumo da vida que, numa nova paisagem, é uma nova vida numa nova paisagem.

7. A família de Lisboa aterra na ilha para passar as férias de natal. O senhorio, conhecido por China por ter olhos rasgados, pediu:

—Tragam o máximo de whisky que puderem!

Daria bom rendimento no seu bar de Totoloto e prostitutas. Fuzileiro em Angola, rebentou-lhe uma mina no ouvido e ouve apenas o que quer. Vê antigos combatentes em todos os portugueses da sua geração. Assim cumprimenta o meu pai, que nem sequer foi à guerra, mas cumpriu o requisitado contrabando do whisky, transportando à vontade umas 20 garrafas. Mas a simpatia do meu pai não bastou para um dia, mais tarde, este mesmo senhorio, angolano casado com uma cabo-verdiana, manifestar em pleno o seu racismo, quando deu corrida a amigos da costa oeste africana que jantavam em nossa casa.

— Este é um bairro de respeito, não queremos cá mandjacos.

Ao perceber os africanos continentais tão pejorativamente tratados, confirmo o racismo interiorizado e a sua instrumentalização colonial, sobretudo na geração mais velha.

O meu tio, que não regressava a África desde a guerra colonial, documenta a estadia da família numa mini-DV. Emociona-se com a dignidade das pessoas e com aquela versão cliché e algo verdadeira dos progressos de Cabo Verde, país exemplar no contexto africano pelo apreço que dá à educação. Em 1975: subdesenvolvimento, maioria da população analfabeta, sem eletricidade. Em 2004: maioria alfabetizada, alternância democrática, energia elétrica para quase todos.

No entanto, encontra-se por cumprir o mais difícil combate do legado colonial: as mentalidades.

No primeiro natal de calor das nossas vidas, o meu irmão veste-se de pai natal dread com estampados de hip hop e Bahamas na camisa, comprada na loja do chinês, recente entusiasmo no que diz respeito a presentes de natal. Levo-os ao sofisticado Café Mindelo, gerido por uma bailarina portuguesa, num largo de armazéns do carvão entretanto demolidos, onde expats se encontram com caboverdianos da cultura. Vamos de passeio aos lugares bonitos da ilha, Madeiral, Calhau, Baía das Gatas e praia de Salamansa (onde quase morri afogada e a vida teria sido breve).

Num desses fins do mundo ou umbigos do mundo, entre dunas, montanhas e praia, escuto na rádio a notícia de uma catástrofe: um tsunami no Oceano Índico carregado de mortes, pouco antes de Katrina. Os cataclismos não são ainda o pão nosso de cada dia.

Mas a alegria é rainha e três dias e três noites demora o ano a passar. Como gosto dos bêbados das terras pequenas, os mais inventivos e revoltados, não poupam hipérboles e incongruências nas suas estórias. Não medem palavras ou gestos, entregando-se a quem lhes tire os sapatos. Como invejo os sapatos livres dos bêbados. Entro numa discoteca improvisada onde o florescente faz luzir as mini-saias e os dentes, como um filme do Bokolo. Os rapazes puxam-me para dançar zuc-love, danço uma música com cada um, sinto os perfumes baratos, o requebro, a altura da cintura, a tesão que vai e vem. Os lados direitos das caras deles juntam-se no meu lado esquerdo, o suor de todos vai-se misturando no meu rosto. Na madrugada do dia 1, os rostos vibrantes e cansados dos boémios acompanham a batucada numa dança ininterrupta, energia em transe que mantém firme o povo de Soncent.

Cabo Verde comemora 30 anos de independência em 2005. Espuma que dá à costa, vou-me entranhando na areia.

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