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Bretanha – Concarneau, ou: Disfunção Cognitiva

Quem seria capaz de ter a estranha ideia de se ir alojar, depois de velho, num lar de estudantes? Nós. Enfim, nem tão velhos como isso, mas já com idade para ter juízo. No entanto, instalámo-nos num lar de estudantes que tinha o charme dos anos sessenta, vista para o parque de estacionamento e para a faculdade de Direito, Economia e Gestão de Brest, para os estudantes que passavam –  quase sempre debaixo de bátegas oblíquas atiradas por um vento inclemente que não os deixava abrir o guarda-chuva. Ali estávamos nós: o professor universitário berlinense, a sua mulher, o Mercedes com matrícula alemã. O cenário disruptivo à hora de jantar na cozinha do lar de estudantes: eles a comer directamente do pacote os pré-cozinhados que tinham aquecido no microondas, nós em festins que incluíam entradas (ostras ou outro marisco qualquer, que também era por isso que estávamos na Bretanha), prato principal, salada, sobremesa. E vinho em copos de pé alto. E copo para água. E os estudantes num canto, a comer em pé. O Joachim oferecia-lhes vinho, mas eles recusavam com timidez, ou outra coisa qualquer. Por onde andas tu, Fellini, que ultimamente não apareces quando as tuas cenas acontecem?

Por falar em filmes, o nosso era o Groundhog Day: todos os dias entrávamos numa cozinha nojenta, limpávamos, deixávamos tudo impecável. Todos os dias a mesma coisa. Isso, e o quarto bastante luxuoso para o standard do lar, mas demasiado pequeno para tudo o que tínhamos connosco e nos aconselharam a não deixar no carro. Seriam uns doze metros quadrados de percurso de obstáculos por cima da bicicleta, das malas com roupa para oito meses, das coisas para a cozinha, do equipamento do laboratório. 

E também havia aquele aviso em folhas de papel A4 à entrada e no quadro de informações. Por ser a preto e branco, ter imenso texto, informar que havia um novo vírus e apelar simplesmente para lavarmos as mãos e termos cuidado, não chegava a ser inquietante. Mas estava ali, à nossa frente. Entre nós. 

Encontrar um apartamento mobilado era, portanto, a prioridade máxima, e rapidamente apareceram dois interessantes: um de duas divisões, acabado de renovar, perto do laboratório do Joachim, mas numa rua cinzenta e sem árvores. E um de uma única divisão, mal mobilado, num prédio velho, mas com uma vista oh-lá-lá. Também havia um com duas divisões e três frentes, todas três com vistas oh-lá-lá – mas não estava disponível para todo o período da nossa estadia, porque já tinha reservas a preços estrondosos para as famosas Fêtes Maritimes que, de quatro em quatro anos, atraem a Brest milhares de turistas dispostos a pagar um dinheirão por alojamento perto da Rade.

Enquanto nos confrontávamos com a difícil escolha entre o conforto dentro de casa ou o conforto da paisagem, fomos passar o fim-de-semana em Concarneau, no sul da Cornualha bretã. Um daqueles colóquios de meio-dia em locais agradáveis. O desse sábado ficou um pouco mais curto porque o orador de uma palestra estava impedido de sair da sua aldeia, por terem detectado um morador infectado com Covid. De repente, aquele vírus misterioso –  que eu sentia ainda muito distante e improvável – dava sinais de vida ali mesmo à esquina de onde estávamos. A verdade é que, no torvelinho da mudança, ainda sem hábitos naquela terra nova, e muito ocupada a procurar casa e a inscrever-me no sistema de segurança social (para quem se lembra da parte da burocracia em Os Doze Trabalhos de Astérix: é tudo verdade), eu andava completamente a leste das notícias. As tragédias de Bérgamo e Ischgl já estavam em curso, mas eu ainda acreditava que a coisa se ia resolver “lá na China”. De facto, só acordei para a realidade alguns dias mais tarde, quando o Joachim chegou a casa lívido, porque tinha estado numa reunião hospitalar onde se debatera o que fazer caso não houvesse capacidade para tratar todos os doentes.  

Teria mais desculpas que os outros para estar alheada da realidade, mas não estava sozinha: nesse mesmo fim-de-semana fui a Brest visitar o tal apartamento que tinha a vista oh-lá-lá, e o agente imobiliário cumprimentou-me com um aperto de mão. Perante a minha breve hesitação, riu-se e comentou: “cumprimentei todas as pessoas que vieram ver o apartamento.”
Mais descansada me deixou…

Não, não estava sozinha, de modo algum. Como se explica que, quando a tragédia de Bérgamo já ganhava dimensões assustadoras, os médicos daquela região ainda se juntassem despreocupadamente num colóquio prazeroso de sábado de manhã na belíssima Concarneau?

Concarneau.
Konk-Kerné em bretão, o refúgio da Cornualha. Como se tudo tivesse sido feito por encomenda: uma enseada perfeita para um porto de águas calmas, com uma ilha no meio, onde construíram a Ville Close, a pequena cidade fortificada, abrigo seguro dos habitantes desde a Idade Média, que Vauban reforçou no tempo do Rei Sol. Hoje em dia, os piratas deram lugar aos turistas, que encontram as portas da fortaleza abertas de par em par e percorrem as estreitas ruas medievais em busca de saques valiosos tais como crepes, souvenirs, impermeáveis amarelos, caramelos com sal. Para evitar engarrafamentos, no extremo oposto à ponte da entrada na fortaleza há um cais e um barquinho que leva os turistas de volta ao continente. 

No século XIX, com o aumento da actividade piscatória e o surgimento de inúmeras empresas ligadas à pesca (desde estaleiros navais a fábricas de conservas de peixe), a cidade alargou-se da Ville Close para as margens da enseada. Uma época de abundância, com inúmeras embarcações, entre as quais os veleiros da pesca do atum que saíam por duas semanas, primeiro em direcção a Portugal e depois seguindo para norte em busca dos atuns-voadores junto à costa da Irlanda. Nas tripulações, crescia o número de antigos empregados agrícolas que se tinham apercebido de que o mar rendia mais que a terra, e embarcavam sem sequer saber nadar. 

Em 1902, a sardinha desapareceu do mar da Bretanha. Concarneau perdeu o seu mais importante ganha-pão. O dono de uma fábrica de conservas teve a ideia de organizar um grande evento de beneficência para atrair público e donativos muito necessários. Artistas e notáveis parisienses juntaram-se ao comité de organização, e em Setembro de 1905, ainda na época alta do turismo, teve lugar pela primeira vez o Festival des Filets Bleus, que hoje é conhecido como “uma das maiores festas tradicionais da Bretanha, uma mostra incontornável da cultura e do património bretões”. Como, afinal, tantas festas deste género em toda a Europa, criadas a pensar nos turistas, onde uma população se oferece aos de fora como se fosse museu de si própria.

Em Setembro de 1930, outra catástrofe: uma tempestade brutal na costa da Irlanda fez naufragar trinta e sete veleiros. Os barcos que, apesar de muito danificados, conseguiram regressar a Concarneau, trouxeram as más novas. Toda a cidade se deslocou para o cais, durante dias ali ficou em espera angustiada, não querendo desistir da esperança de ver chegar os seus. Em vão: o mar levara duzentos e sete homens – só de Concarneau, foram quarenta e sete. 

Estes números não me saíam da cabeça enquanto passeava pelas ruas da pequena cidade. Quantos daqueles mais velhos com quem me cruzava na rua teriam crescido como órfãos? Como é que uma comunidade se reergue depois de tamanha tragédia? Por quantas gerações se arrastarão os traumas? 

Mas levanta-se, arranja sempre maneira de se erguer de novo. Como a Ville Close se reergueu depois das bombas da Segunda Guerra Mundial. Tantas décadas mais tarde, todas aquelas construções parecem resistir inalteradas desde a Idade Média, desde o tempo do Rei Sol. 

A cidade diversificou as actividades económicas, e mesmo a pesca desenvolveu facetas novas. Como é o caso de um antigo barco de pesca da sardinha, o Santa Maria, que se oferece para levar grupos (amigos, festas familiares, colegas de trabalho) à pesca no alto mar. Meio dia para encher o cesto de fanecas, douradas, robalos e cavalas, ou o dia inteiro para ir até à ilha de Glénan buscar cação, congro e raia. 

No Museu da Pesca descobrimos um celacanto conservado em formol. Até eu, que nem sei como se pronuncia “Darwin”, me senti empolgada: à minha frente tinha um ser que, até 1938, se julgava extinto há mais de sessenta milhões de anos. Um elo ainda vivo da cadeia da passagem de peixes para anfíbios, com dois pares de barbatanas que lembram os membros dos vertebrados e fazem os mesmos movimentos. Também encontrei nesse museu um barco baleeiro dos Açores. Fascinante, por ser português (podem tirar a rapariga do seu país, mas não tiram o país da sua rapariga). E umas maquetes exemplificativas dos tipos de pesca, que me provocaram imenso desconforto: ali se mostrava, de forma simples e visualmente apelativa, o modo como se espalham as redes no mar. Sem nenhuma informação complementar sobre o mal que faz aos oceanos. “Então? Então? Então como é?” eu aos gritos dentro de mim, chocada com tanta falta de politicamente correcto. Até que me ocorreu que nunca pergunto como é pescado o peixe que tenho no prato. E às vezes até compro raia, apesar de conhecer os custos da pesca de arrasto. Estava a exigir mais dos outros que de mim própria.  

É um tempo estranho, este: sabemos muito, mas não somos consequentes a ponto de mudar os nossos hábitos. Sabemos da destruição dos oceanos, sabemos do sofrimento dos animais criados em condições de baixo custo, e continuamos a consumir esses alimentos. Naquele primeiro fim-de-semana de Março de 2020 até sabíamos que um estranho vírus já tinha chegado à Bretanha, e continuámos a nossa vidinha como se nada fosse. Disfunções cognitivas. 

Já noutras áreas somos capazes de aprender bem depressa e mudar o comportamento imediatamente. Bastou a exclamação indignada do empregado do restaurante: “O quê? Vocês querem almoçar às duas da tarde?! Já não servimos almoço de domingo a esta hora!” para aprendermos logo que tínhamos de orientar os nossos dias de passeio para ir almoçar por volta do meio-dia. Aprendemos logo, é certo, mas durante várias semanas de pouco nos iria servir. 

Nesse domingo, 8 de Março, antes de regressar a Brest ainda assistimos a uma peça de teatro de um ciclo de “Teatro no Feminino” que estava a decorrer na região. Era L’Origine du Monde, da companhia de teatro de expressão corporal Fiat Lux. Belo e brutal: duas actrizes davam corpo (sim, corpo) às vozes de mulheres de todas as idades e de todos os níveis sociais que traziam à luz o mais íntimo de si a primeira menstruação, a sexualidade, o aborto, a maternidade, o mundo do trabalho, a violência, a menopausa. Na conversa com o público, no final, o encenador anunciou cheio de satisfação que daí a algumas semanas estariam no festival OFF de Avignon, e o público aplaudiu, desejando-lhes o melhor. Quando Bérgamo já estava fora de controlo, quando já havia ali perto uma aldeia fechada devido a um caso de Covid, todos nós acreditávamos ainda que, daí a algumas semanas, aquela peça de teatro seria realmente apresentada em Avignon. 

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