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Bretanha, Le Conquet

No dia 2 de Março de 2020, quinze dias antes do discurso de Macron que fecharia a França, saímos a meio da tarde para Le Conquet. No caminho para essa pequena cidade costeira passámos junto a um bunker marítimo de tamanho desmedido. Herança da ocupação alemã, era o primeiro de muitos bunkers que viríamos a encontrar em quase todas as praias da Bretanha. E eu, que nem sequer tenho nada a ver com essa História, estremeci e senti-me embaraçada pela imposição destas construções em betão que o Reich deixou para perdurarem por mil anos em frente ao mar. Quanta arrogância do ocupante, quanto desprezo pelo ocupado! Perante estes vestígios de um período terrível, pensei nas actuais relações franco-alemãs: como foi possível, apesar das mortes e da destruição que deixaram nas terras invadidas, construir em tão pouco tempo uma paz duradoura entre as populações dos dois países? Podemos acreditar que a paz é possível, se houver realmente vontade de a instalar e manter? 

Escolhemos Le Conquet por recomendação dos colegas bretões do meu marido. Ficava apenas a 25 km de Brest, e era um sítio bonito para passear e onde serviam bons crepes, disseram eles. O meu guia alemão acrescentava que tinha sido um antigo ninho de corsários, muito temido. “Quais corsários?”, perguntei-me, porque desde que vi na costa da Califórnia uma placa anunciando a passagem de “Sir Francis Drake” (sim: um respeitoso “sir”, em vez do “temido pirata” que eu aprendera na escola) ganhei um certo cepticismo em relação a estas classificações. Em todo o caso, certo é que Le Conquet sofreu imensos ataques marítimos, saques, devastações. A última grande destruição da localidade aconteceu em finais do século XVI. Desde então, tem havido sossego – pelo menos até o turismo ter começado a destruir a sua silhueta tradicional.

Apesar de um agressivo hotel de luxo empinado sobre a falésia, alguns prédios de apartamentos e o inevitável bunker alemão, sobra ainda muito do antigo charme da cidadezinha em frente à península de Kermorvan, com os barcos de pescadores abrigados no porto, as ruas íngremes ladeadas de casas antigas, a ria que se enche de embarcações docemente entornadas no lodo nas horas de maré baixa, o festival de pássaros que andam à sua vidinha, alheios aos caminhantes da costa – e o famoso farol que foi testemunha do regresso de Astérix no final da sua Volta à Gália.

De passeio pelo centro da localidade, uma placa na parede de uma pequena igreja fez-nos parar. Era a casa onde morrera Dom Michel, que o povo decidiu transformar em capela. Michel le Nobletz (1577-1652) nasceu numa família nobre bretã, seguiu o chamamento da fé para se tornar padre, e recebeu a alcunha de “padre louco” devido aos seus métodos invulgares. Missionário cristão muito carismático, dedicou a sua vida a tentar evangelizar os bretões que se mantinham fiéis aos antigos ritos pré-cristãos, e também alguns padres seus colegas, cujos abusos e desvios criticava abertamente. Inspirado no exemplo dos huguenotes, escreveu cânticos em bretão com textos da Bíblia e do catecismo para cantar com melodias populares conhecidas, de modo a difundir a mensagem cristã junto de pessoas analfabetas. Também para os analfabetos, criou “quadros de missão” (tableaux de mission ou taolennou, em bretão), uma espécie de banda desenhada para levar às pessoas os ensinamentos da religião numa forma mais fácil de entender. Feminista avant la lettre, pedia ajuda às mulheres das suas relações para catequizarem as crianças e irem às casas das famílias explicar os taolennou. E lutava pelo regresso à pureza original cristã, acusava o deboche de alguns padres e crentes, a ganância de certos mercadores – o que (imagino eu) lhe terá valido tantos inimigos que anda há mais de três séculos para ser beatificado, e nada. Aparentemente, o Vaticano está à espera de um milagre para começar a pensar no assunto. Como se não fosse milagre bastante um homem de rica família nobre morrer numa casa humilde depois de dedicar toda a sua vida a transmitir os ensinamentos de Cristo à revelia dos erros instalados na sua Igreja.

De testamento, Dom Michel deixou aos seus familiares um “saudável nada”: “Quis deixar-vos, por testamento, este belo nada num cofre, esperando que possais tirar dele mais lucro e ganho do que se vos tivesse deixado um tesouro em ouro ou prata, sabendo bem que a posse de ouro e prata e outros bens deste mundo são os inimigos mais perigosos da nossa saúde.” 

Nessa tarde, tínhamos saído para Le Conquet com um tempo radioso mas, quando percorríamos calmamente as ruas do burgo, o céu desabou sobre as nossas cabeças. Nada de novo: na Bretanha diz-se que a chuva só molha os palermas; os outros abrigam-se no primeiro bar. Nós abrigámo-nos na Crêperie Louise de Bretagne, instalada numa casa do século XV, a comer crepes e beber sidra. 

Berlim, com toda a sua vida e oferta cultural, estava repentinamente muito longe. Naquele momento, só contava o crepe de queijo de cabra no meu prato, a sidra a borbulhar no copo, a chuva a cair com força contra as paredes medievais, e a agradável sensação de estar a entrar num mundo diferente e cheio de surpresas. 

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