Fotografia de Helena Araújo

Bretanha – Sozinhos em casa

Onde estava no momento em que lhe anunciaram que ia viver várias semanas em confinamento?

Eu estava num lar de estudantes em Brest, a fazer as malas para mudar para um alojamento local onde ficaríamos alguns dias, enquanto esperávamos a data de entrar no apartamento que arrendámos. O telefone tocou. Era o Joachim, a dizer que “fontes próximas do Eliseu” o tinham informado de que o Macron ia fazer um discurso na televisão, para anunciar que a França fechava no dia seguinte, a partir do meio-dia. E nós a mudar para uma casa com a despensa vazia! Em pânico, corri para o supermercado. Enchi o carrinho com o necessário para uma primeira semana. Na fila da caixa, clientes com cestas de compras frugais olhavam incomodados para aquele meu Evereste sobre rodas, e particularmente para a cereja em cima do bolo: o saco de rolos de papel higiénico a cobrir os pacotes de esparguete. A açambarcadora acidental.

Nessa noite, Macron dirigiu-se à nação. Repetiu seis vezes que estávamos em guerra – mas, como se viria a descobrir rapidamente, desta vez as trincheiras eram no sofá. Menos mal. Durante seis semanas, com raras excepções, não poderíamos sair de casa mais do que uma hora por dia, e não nos podíamos afastar mais do que um quilómetro da nossa residência. Mas podíamos ir às compras. Às compras de bens essenciais.

Ora bem: eu era aquela que na semana anterior tinha feito uma lista de móveis, escolhidos a dedo, para transformar em lar acolhedor o apartamento minúsculo e de mobiliário indigente que arrendara para passar seis meses na Bretanha. Quando o mundo parou, suspenso na luta contra um vírus desconhecido, a primeira preocupação que me ocorreu foi – e já na altura tinha noção do ridículo – “e agora, como compro a minha estante Kallax que ia servir tão bem de distribuidora de espaços dentro da divisão única? E a mesa de design nórdico, e a cadeira confortável para trabalhar?” De onde se conclui que o fim do mundo pode vir à vontadinha, que a mim não mete medo nenhum. Desde que não me chegue com uma etiqueta em letras garrafais a dizer “atenção, isto é mesmo o fim do mundo, literalmente, entendeste? kaputt, finito, the end!”, provavelmente nem me fará pestanejar, porque não reparo. Ou talvez seja um truque da cartola do instinto de sobrevivência: se, assim como assim, isto vai correr mal, mais vale focar-me numa perda imediata que seja mais fácil de suportar.

Nos primeiros dias do confinamento, parecia-me que o mundo à minha volta tinha sido desligado da corrente eléctrica. O sossego instalou-se na cidade. E cada um de nós “aprendeu a notar coisas a que não dava atenção”, como no poema de Vinicius. Os diferentes cantares dos pássaros, a luz na cor das nuvens, os dois caracóis que chegaram a nossa casa numa alface biológica, os dizeres parvos na embalagem de gel de duche (“Lendemain difficile. 0% regrets. Lave ta conscience, ton corps et l’historique de tes messages d’hier soir” – o capitalismo a prometer milagres por menos de 2 euros…).

A segunda impressão foi de grata surpresa, ao ver as redes de amizade que se estreitavam: de todos os lados chegavam mensagens e telefonemas, “Estão bem? tenham cuidado convosco!” Um mundo de pessoas fechadas em casa, unidas em abraços virtuais. E os artistas, e as empresas ligadas à cultura, todos a oferecer gratuitamente o seu trabalho na  internet. Ainda hoje, é a recordação mais feliz desse tempo: a orquestra a tocar no meio da tempestade, as pessoas a dar-se em palavras e gestos de bem-querer.

Num contexto de regras alteradas, pensava naqueles com trabalhos, digamos, menos protegidos pelo sistema: os que vivem da caridade, da prostituição, dos furtos. Sim, os carteiristas e assaltantes de casas: de que iriam viver naquele período, sem ajuntamentos nos transportes nem em lado nenhum, e com toda a gente em casa? Como é que um carteirista consegue trabalhar em regime de home office?
E pensava nas famílias com crianças em casa, na dificílima gestão do trabalho dos pais, das tarefas escolares dos filhos, nos grupos de várias gerações fechados em espaços exíguos. Tantos heróis!

Os amigos perguntavam-me: “e vocês, como se estão a dar com o confinamento?”

Respondia: “Lindamente. Temos queijo francês, ostras, baguete”. E vinho, claro. Nem às paredes confesso, mas foi uma grande companhia.

O mundo vivia uma tragédia, mas a nós coube-nos uma sorte inesperada: acabávamos de chegar a uma vida nova, ainda não tínhamos hábitos nem lugares para perder. Inventámos as nossas rotinas dentro dos limites desse tempo, tudo era agradável novidade: as idas ao supermercado – a escolha do vinho e do queijo – eram momentos de cultura e festa. Alegrávamo-nos com a qualidade do marisco, cada vez mais barato por não haver turistas. Como se estivéssemos em férias, íamos a pé até ao porto na rada de Brest para comprar peixe fresco. Fazíamos exercício físico subindo várias vezes a correr a escadaria da falésia que separa a cidade alta da zona portuária, dávamos passeios ao longo do rio: experimentávamos cenários novos, cheios de beleza.

Descobrimos o prazer da radio France Culture. O poder redentor do humor nas publicações da Mamouz no instagram, gargalhadas quotidianas sobre o que nos estava a acontecer. As reflexões de Wajdi Mouawad, director do Théâtre de la Colline de Paris, que começou por partilhar a sua angústia perante a crise que se avizinhava e, ao olhar para os filhos que brincavam no jardim, pensou que estas crianças, que significavam tudo para ele, não existiriam se não tivesse havido uma guerra no Líbano que obrigou a sua família a fugir e a procurar outros portos, onde ele viria a encontrar a sua companheira. Uma maneira poética e pessoal de repetir a velha ideia da crise como oportunidade – e de nos convidar a sonhar um tempo fora daquele tempo.

Quando chegou o momento de mudar para o apartamento arrendado, a IKEA continuava fechada – a loja, e as vendas online. O hospital onde o Joachim trabalhava emprestou mobiliário de escritório, amigos emprestaram candeeiros e cadeiras, o dono da tabacaria onde comprávamos o café para beber na rua cedeu-nos uma mesa do bistrot agora fechado. Não comprei a Kallax, mas comprei formas de bolos, assadeiras e toalhas alegres no supermercado: quase foi suficiente para ter a sensação de que ainda controlava o meu destino. Das janelas do nosso apartamento víamos duas docas secas da Marinha francesa, onde consertavam barcos. Mais além o rio, e por trás o casario de Brest subindo a colina. À distância, dou-me conta de que passámos várias semanas a ver navios, navios encalhados entre muros de betão, encalhados nós também num apartamento que não era maior que a nossa cozinha em Berlim. Aquele estúdio minúsculo estava longe de ter o ambiente e o conforto desejados – e mostrou-nos que podemos ser felizes com muito menos do que aquilo que sonhámos. Algo em nós escolheu focar-se com teimosia no que os dias nos ofereciam de bom, simultaneamente actores da nossa vida e espectadores de um momento histórico. E foi assim que descobri que temos, como casal, algo muito valioso: conseguimos navegar na adversidade sem nos deixarmos derrotar. Obrigada, covid.

Mas quando Macron voltou a dirigir-se à nação e prolongou o confinamento por mais um mês, senti-me tomada de desânimo. Numa reacção um tanto infantil de quem sente estar a receber um castigo injusto, comecei a transgredir. A caminhada para comprar peixe no porto era bem mais do que uma ida às compras. Passeava longamente em ruas e caminhos florestais desertos, tentando ignorar as ferroadas da consciência, que me acusava de estar a imitar o comportamento dos oportunistas das vacinas: se podia sair e saborear as ruas desertas sem correr riscos de apanhar covid, era apenas porque todos os outros se sacrificavam pelo bem comum, permanecendo fechados em casa. Por esses dias, ao olhar para mim, Kant diria: “we are not amused.”

Bretanha - Sozinhos em casa
Fotografia de Helena Araújo

Ao fim de dois meses e meio, a liberdade regressou, e as ruas encheram-se de cartazes a dizer “Que bom ver-vos cá fora!”. Começou por ser liberdade condicionada: durante quatro semanas, os restaurantes e cafés permaneciam fechados, mas as pessoas podiam viajar num raio de 100 km à volta da sua residência. Os parisienses não tinham maneira de chegar à Bretanha, e nós já lá estávamos. Tínhamos as penínsulas, as ilhas, as cidades antigas: tudo tranquilo, quase só para nós. 

A Bretanha, finalmente.

 

(Continua)


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Fotografias e vídeo de Helena Araújo

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