Teve uma trajectória de vida direita como um fio de prumo. Soldado, político e poeta nas horas de lume, como gostava de cunhar os serões à lareira da sua casa serrana perto do Caramulo. Intransigente na defesa dos valores republicanos, da cidadania e da cultura, como foi dito na homenagem que lhe foi feita precisamente no Caramulo em 1998.
António Manuel Cardoso Fernandes nasceu em 1942, em Paranho de Arca, filho de lavradores e primogénito de uma fratria de seis irmãos. Fez a escola no Caramulo e o curso geral dos liceus em Viseu, ao que se seguiu a Academia Militar, que concluiu já em plena guerra colonial. Faz a especialização no Porto, na Escola Prática de Transmissões, e segue a bordo do Vera Cruz para Moçambique, em 1964, como tenente especialista em transmissões. Um estômago sensível (doença de Crohn, talvez) obriga-o a fazer a comissão toda em Lourenço Marques como instrutor de radiotelegrafistas, muito longe dos teatros de operações. Cardoso Fernandes visita feridos no Hospital Militar de Lourenço Marques (HM 2237) e começa aí a conviver com soldados com queda para a canção de intervenção. Participa como letrista em algumas das composições que darão origem ao célebre Cancioneiro do Niassa.
Nesses dias de tédio e guerra (Cardoso Fernandes: Autobiografia de um homem íntegro, Ed. Latões, Caramulo, 1998), o nosso homem começa a cultivar-se. Lê com inquietação (Op.Cit.) Os Centuriões, de Lartérguy, emociona-se (Op.Cit.) com Florbela Espanca, entra no mundo de sombras (Op.Cit.) de Sophia. No regresso à Metrópole, presta serviço na Escola Prática de Administração Militar (EPAM), em Lisboa, aproveitando para se licenciar em Direito com média final de 12 valores. Mais importante do que os estudos e as rotinas castrenses é o sobressalto cívico (Op. Cit.) com que presencia o 25 de Abril. Já com o posto de capitão do Exército Português, foi alheio ao clima conspirativo por factores que o ultrapassaram. Casa em 1971 e nascem-lhe dois filhos de rajada, o que, aliado ao trabalho e ao curso de Direito, não lhe deixou espaço para a política. Seja como for, recuperou a tempo de integrar a 4.ª Repartição da 5.ª Divisão do EMGFA, em Junho de 1974, sob a direcção do (então ) coronel Vasco Gonçalves (que sairia em Julho para ocupar o cargo de primeiro-ministro).
Cardoso Fernandes continua na 5.ª Divisão quando esta passa a designar-se Divisão de Assuntos Político-Militares, trabalhando no Centro de Esclarecimento e Informação Pública (CEIP). Aprende com Lenine e Bukarine nas poucas horas que o expediente lhe deixa vagas.
É ele que, a 11 de Maio de 1975, vai à tipografia, acompanhado de um destacamento do COPCON, apreender as 15 mil cópias do livro do major Barão da Cunha, Radiografia Militar. Cardoso Fernandes dirá mais tarde (Op.Cit.), quando confrontado com “uma violação do princípio da liberdade de expressão cometido pelo MFA”, que se limitou a cumprir ordens como bom militar.
Deixa a vida castrense em 1980 e inicia a carreira política enquanto advoga em Viseu e no Caramulo. No início, tacteia as várias sensibilidades políticas. Candidata-se pelas listas da UDP em eleições autárquicas e legislativas, mas depressa se desilude com o clima mesquinho de intriga e fanatismo esquerdista (Op.Cit.). Nesta fase, publica uma monografia sobre Paranho D’Arca e um livro de memórias da guerra colonial Na linha da frente: memórias de um patriota contrafeito (Ed. Estágio, 1983). Em 1987 inscreve-se como militante no PSD e é eleito para a Junta de Freguesia de Paranho D’Arca. O país moderniza-se e é necessária uma mão de ferro e uma alma limpa para gerir os fundos comunitários (Op. Cit.). Deixa a advocacia e dedica-se à construção civil numa sociedade com Fernando Madeira, ex-presidente da concelhia do PSD de Viseu e primo em segundo grau da sua mulher.
O espírito inquieto não se contenta com o betão e a vida partidária. Cardoso Fernandes assume então a conclusão lógica da sua vida intelectual e cultural. Publica em 1995 Como o PREC destruiu Portugal: radiografia de um ano, que é apresentado em Viseu, por Galvão de Melo, numa sala do hotel Grão Vasco cheia de admiradores e amigos.
Morre em 2003, depois de, já debilitado por um enfarte do miocárdio, ter trocado uma garrafa de água por uma de lixívia.