Há duas fases da vida em que se torna absolutamente essencial ter uma rotina de cuidados de pele: a vida propriamente dita, e depois a morte. Felizmente, a indústria da beleza fatura cerca de 98 mil milhões de dólares por ano nos EUA, a indústria funerária 23 mil milhões, e ambas vendem potes e poções que ajudam humanos biodegradáveis e compostáveis a ter um aspeto ligeiramente mais inerte. Aleluia. Não há memento mori que nos afete quando temos estes cremes todos ao nosso dispor.
Enquanto mulher na casa dos 30, habito a faixa etária mais aliciada por produtos de skincare nos tempos que correm (só comparável com as mulheres abaixo dos 20 e as mulheres acima dos 40). Espera-se que a minha rotina de cuidados antienvelhecimento seja simples, 3 a 10 produtos, talvez, mas completa, com um equilíbrio competente de ingredientes ativos que vão da vulgar vitamina C aos ácidos lactobiónico, poliglutâmico, e tranexâmico.
Espera-se que a minha pele consiga cumprir com uma série de critérios: deve ser macia e suave, mas não frouxa e mole (já dizia Shelley Jackson, sobre restos de comida no lava-louças, mas também sobre a flacidez dos nossos corpos e o desalinho dos nossos cabelos, everything soft seems decayed to us). Deve ser consistente e resistente, quase como um colchão de molas, e firme, mas não tão firme que pareça mumificada em vida. Deve ser uniforme à vista e ao toque, em tom e em textura. Deve ser luminosa, mas não oleosa. Mate, mas não papírica. Não é ideal ter poros muito visíveis nem é ideal ter rugas, mas nesta idade já se espera que eu tenha algumas e que esteja em guerra aberta com elas, porque as minhas fibras de colagénio e elastina entraram em motim quando passámos o porto dos 25 e cabe-me agora a mim aguentar o barco, reprimir esta insurreição, vitamina C em frasco airless numa mão e gua sha do AliExpress na outra.
Nesta idade, os produtos que me compete usar ainda parecem relativamente lógicos e práticos. Os meus potes e poções prometem hidratar e “repulpar” a minha pele ressequida, preencher as minhas “linhas finas” e rugas de expressão, revitalizar o meu cansadíssimo contorno ocular, uniformizar a minha tez, dar uma lixadela—suave, sempre suave—aos poros das minhas bochechas. Ainda há aqui uma correspondência mais ou menos realista entre o que está a acontecer no meu rosto e o que pode ser feito para proteger o meu frágil invólucro da devastação que o aguarda. O tempo espera-me ao virar da esquina, e já se sabe que das rugas à cova é um saltinho.
Destes potes e poções, há alguns que efetivamente cumprem com as suas promessas, que me deixam hidratadíssima e repulpadíssima, qual caravela-portuguesa, mas não consigo deixar de os olhar com desconfiança. Afinal, se eu usar religiosamente estes produtos durante os meus 30, chegarei aos 40… e continuarei a ter de os usar. O skincare dos 30 não me vai poupar ao skincare dos 40, 50, 60, 70, e espero que 80, e espero que 90. Vou envelhecer na mesma, e vou morrer na mesma, e quando chegar ao fim estarei enrugada e morta e na minha folha de ponto terei registadas seis mil horas de aplicação de potes e poções que, afinal, não preveniram coisa nenhuma. Calculando com base em 20 minutos diários de aplicação de cosméticos ao longo de 50 anos, mais coisa menos coisa.
Penso nisto sempre que vejo—e quero, quero muito—séruns que custam metade do meu orçamento de Estado pessoal e prometem preencher as minhas rugas. Imagino esse dinheiro todo nas minhas rugas, a colori-las com a cor do dinheiro, que na vossa imagem mental poderá ser dourado ou verde, mas na minha é dourado, e assim fico a parecer uma daquelas taças kintsugi, com ouro entrincheirado nas minhas rugas, que ainda são superficiais por isso exigem pouco ouro, mas eventualmente serão fundas e exigirão mais e mais e mais e toda eu serei ouro, toda eu kintsugi mas tão, tão longe de aceitar as minhas imperfeições.
Eventualmente, terei preocupações maiores do que “rugas”. Vou perder densidade e firmeza. A minha pele vai renovar-se mais lentamente, em ciclos cada vez mais longos, e portanto vou ficar cada vez menos luminosa e cada vez menos uniforme. O meu contorno ocular, já pouco enérgico, será cadavérico. A certa altura, num ponto que espero conseguir identificar quando lá chegar, as poções vão mudar de nome. Às promessas práticas substituir-se-ão nomes rebuscados que prometem reverter o envelhecimento, congelar o tempo, atrasar o relógio, virar a ampulheta. Não penses na morte, não penses na morte, não penses na morte, dizem estes potes e poções que, não sendo propriamente a favor de nada, querem ser contra o tempo. Mas não há cremes contra o tempo. Ele passa, com ou sem a nossa colaboração, com ou sem o nosso consentimento, e inclusive passa enquanto estamos ocupadas—distraídas? investidas? cada uma saberá—a aplicar cremes que prometem preservar-nos contra este déspota. Se parece tudo muitíssimo circular, é porque é: aplicamos cremes para recuperar tempo que passaremos a aplicar mais cremes.
Com ou sem skincare, esses 5 dias vão passar, e com ou sem skincare, vamos todas morrer. Talvez isso chegue para justificar tanto a escolha da mulher que ama as poções como a escolha da mulher que rejeita as poções. Se nada importa porque vamos todas morrer, use-se o skincare. Ou, se nada importa porque vamos todas morrer, use-se coisa nenhuma. O dilema morrerá connosco—mas haverá um compasso de espera, e nesse compasso encontraremos a tanatoestética.
Os mortos, como os vivos, podem beneficiar de uma série de procedimentos estéticos: skincare, maquilhagem, manicure, cabeleireiro, e até intervenções estéticas ligeiramente mais invasivas. Lá fora chamam-lhe embalming; nós, em Portugal, chamamos-lhe tanatopraxia.
A tanatopraxia é uma técnica de preservação que pretende, resumidamente, melhorar o aspeto de um morto para que possa comparecer ao seu próprio velório com uma apresentação pouco ofensiva para os vivos. Até tem o seu quê de aprazível. Inicia-se com um banho, e depois uma massagem de corpo inteiro. Um cadáver não sente stress, não armazena tensão nos ombros nem no pescoço, mas tem rigor mortis, o que para estes efeitos é semelhante. Segue-se um simples processo de substituição: entuba-se uma artéria, entuba-se uma veia, por uma entra uma combinação de formol-água-corantes, e pela outra saem os 4-5 litros de sangue que andámos a acartar em vida.
Aqui entre nós: ninguém vai reparar que os deixámos para trás. Em Portugal, só temos direito a 72 horas de socialização com os vivos antes de sermos sepultados ou cremados, e se tivermos vivido bem estarão todos distraídos, idealmente, a chorar-nos.
Segue-se uma breve aspiração abdominal, onde ainda vamos deixar para trás o conteúdo dos nossos órgãos mais espaçosos. Isto é importante, porque é por aqui que começamos a decompor-nos a olhos vistos, num ponto de interesse cultural (para bactérias) chamado fossa ilíaca direita.
Estes procedimentos post mortem—como, aliás, teoricamente, todos os procedimentos ante mortem—são absolutamente opcionais. Questões culturais condicionarão a escolha de cada um. Nos Estados Unidos, onde se pratica e promove agressivamente o embalming desde a Guerra Civil, estima-se que cerca de 50% dos corpos sejam embalsamados. Em Portugal, estávamos perto do 1% nos dados mais recentes, de 2016.
Devidamente entubados e aspirados, podemos passar à maquilhagem e ao cabelo, aos fillers se necessário, à tal estética dos mortos que tanto se aproxima da estética dos vivos que não destoa nada nas páginas da Allure, Coveteur, Nylon, Pop Sugar, Refinery 29, ou The Cut.
A pele de um morto, como a minha, está sujeita a uma série de requisitos. Quer-se macia e firme, luminosa e mate, mas, acima de tudo, quer-se rosadinha. Para isso é que servem os corantes. As rugas acabam por ser um bocadinho relativizadas, porque o visual ideal para um morto presidindo ao seu próprio velório é “vivo” mas não é, definitivamente, “jovem”. A um morto cabe ser velho, muito velho, o mais velho possível.
O caixão não é lugar para peles repulpadas.
É ligeiramente libertador saber que a maioria dos mortos precisa de menos cuidados antienvelhecimento do que os vivos—que os padrões de beleza não nos podem seguir nem até nem para além da cova, que a morte nos pode ajudar a fazer as pazes com o tempo. Por outro lado: só em mortos é que nos podemos dedicar verdadeiramente à causa da nossa eternidade.
Vladimir Lenin, ou só Lenin, o camarada Lenin, morreu a 21 de janeiro de 1924. Teve direito a funeral de estado e, logo a seguir, a um mausoléu para sessões de meet-and-greet no centro de Moscovo.
Os primeiros tempos foram um feliz acaso. Com uma ajudinha do clima e de uma primeira ronda de químicos conservantes, Lenin aguentou firme durante dias, semanas, e meses. Só em março é que o seu corpo foi efetivamente embalsamado para fazer frente à eternidade, mas entretanto a autópsia já lhe levara o cérebro, os órgãos internos, e as artérias necessárias para o entubar como hoje se entubam 1% dos portugueses. Sem problema. O engenho soviético (aquele famoso por supostamente ter levado lápis para o espaço enquanto os americanos perdiam tempo a desenvolver canetas) limitou-se a desenvolver uma nova forma de embalsamar o corpo do primeiro líder na nação.
Lenin não foi só embalsamado. Lenin sofreu um “método de preservação dinâmico” que durou quatro meses e que sujeitou o seu corpo a imersões consecutivas, a injeções várias, à substituição gradual das suas peças orgânicas por imitações sintéticas, ao ajuste e reajuste e modelação e escultura permanentes das suas feições. Em julho, os embalsamadores de Lenin reportaram que, se preservado de acordo com este método inovador, o corpo de Lenin continuaria igual a si mesmo durante “muito tempo”.
Quanto tempo, exatamente? Muito tempo. O único senão é que uma vez iniciado—e já estava iniciado—o processo não poderia ser interrompido. Até hoje, o Lenin exposto em Moscovo não está meramente embalsamado. Está em processo ativo de embalsamamento, todos os dias.
Vive num ambiente com temperatura e humidade controladas. Não apanha sol, não fuma, não bebe, e não se expõe à matéria particulada que supostamente aumenta o risco de desenvolvimento de rugas e manchas escuras. Não compromete a sua barreira cutânea com agressões externas. O camarada Lenin tem todo o tempo do mundo para fazer máscaras faciais e peelings, e dizem as más línguas que começou a fazer injetáveis algures nos anos 40. (Nada de especial, só um cocktail de parafina, glicerina, e caroteno para manter o volume do rosto.) A cada 18 meses, Lenin retira-se da vida pública para ir a banhos de glicerina e químicos vários. Desaparece durante dois meses, e volta com um glow up.
A eternidade dá imenso trabalho—mas, para Lenin, até parece fácil.
Para mim, não é nada fácil. Não me posso dar ao luxo de tirar dois meses a cada 18 para ir aplicar glicerina e químicos vários e voltar mais bela do que fui. Sobram-me os tais 20 minutos diários. Não admira que não consiga competir; não admira que eu envelheça mas o camarada se consiga manter impecável, imutável, sem mancha, sem mácula, sem tempo.
Não sabemos o que pensaria Lenin sobre o seu estado, ou sobre o meu, mas podemos imaginar que talvez fosse algo ríspido e crítico, algo lúcido, algo como isto: you consciously take part in the artifice of your preservation, yet believe your own lies.
O Lenin vivo nunca disse isto, claro. Mas o Lenin morto, embalsamado, em embalsamamento, personagem de Beauty Secrets of the Martyrs de Verity Holloway, di-lo a São Silvano, mártir cristão, jovem e incorrupto, quando este lhe tenta vender uma malinha de cosméticos.
Nem é uma ideia descabida. Quem melhor do que um santo incorrupto para dinamizar a indústria da beleza, a tal que vale vários mil milhões de dólares? Pode não ser belo num sentido tradicional, mas está bem preservado, que é o tipo de coisa que gostamos de dizer a senhoras de alguma idade que também não são belas mas ainda se esforçam. São Silvano, morto no século IV, está preservadíssimo. É aspiracional, até para Lenin. Há quem aplique skincare e há quem se sujeite a “métodos de preservação dinâmicos” de duração indeterminada, e depois há quem simplesmente morra e fique na mesma para sempre. Incorrupto. Indecomposto.
Este tipo de incorruptibilidade está reservado a santos e aspirantes. É consequência direta da intervenção divina de uma mão celestial que, hidratada, elegante, e sem rugas, aponta para este ou aquele cadáver e diz “este foi é e será santo, e por isso não se vai decompor, e quando um dia o encontrarem imaculado no túmulo saberão que é santo”
Não são precisos retinóides nem artifícios—um santo incorrupto escapa à tirania do tempo apenas e só porque foi escolhido para tal. Não investe qualquer esforço nesta demanda. A eternidade acontece-lhe.
Temporariamente.
Depois dá-se-lhe um banho de ácido, se for necessário. Paula Frassinetti, que foi encontrada incorrupta em 1906 mas não se manteve assim muito tempo, sobreviveu ao seu. Pierre-Julien Eymard, encontrado incorrupto em 1877, nem por isso.
Depois chama-se o conservador-restaurador, o patologista, o bioquímico, o arquiteto, o técnico de laboratório. Chama-se o Monsenhor Gianfranco Nolli, que durante anos encabeçou, a partir do Vaticano, o esforço de preservação de relíquias e corpos de santos incorruptos que, afinal, corromperam. Os cantos mais bizarros da internet gostam de desenterrar esta história do spa das relíquias de tantos em tantos anos, mas não há aqui nada de bizarro. Nada de nada. É só o Vaticano a perceber que nada dura e que a eternidade se quer esterilizada, corada e conservada, regada a químicos com nomes impronunciáveis, “imunizada”—palavra do Monsenhor—com arsénio suficiente para matar um regimento.
É violenta, esta corrida contra o tempo. Desgastante. É um projeto que, quando iniciado, se deve perpetuar a qualquer custo. Nunca se completa—só se perpetua.
As feições dos santos vão ficando polidas e uniformes, transcendentes, todos eles parecidos, como se convergissem em direção a um único rosto que talvez seja o rosto intemporal da humanidade, o único que seremos capazes de preservar. Lenin vai deixando pedacinhos pelo caminho—o cérebro, os órgãos, as artérias, e até as pestanas, entretanto substituídas por falsies. Discute-se se o que sobra de Lenin corresponde a 10% ou 23% do original, e discute-se se isso importa.
O ente querido embalsamado deixa 5 litros de sangue na mesa. Leva no seu lugar 5 litros de água, corantes, e conservantes.
E sobro eu, nos 30. Para já ainda não sacrifiquei muito—só tempo, energia, e dinheiro, nas palavras da jornalista de beleza Jessica DeFino—, mas sei que ainda não fui verdadeiramente posta à prova. Ainda conto as minhas rugas pelos dedos. Ainda me dizem que sou jovem para ter tantos cabelos brancos. Pergunto-me se os quererei esconder daqui a 5, 10, 15 anos. Pergunto-me se quererei o botox preventivo, os fillers, os injetáveis. Pergunto-me se me sentirei tentada pelos Time Reverse Age Rewind Chrono Miracle Anti-Aging Rejuvenation Elixirs quando mos oferecerem.
Acima de tudo, pergunto-me se terei fé, como o tanatopractor e os embalsamadores de Lenin e os homens das relíquias do Monsenhor Nolli, ou se terei lucidez.