O título chamou-te a atenção, não foi? Ainda chamaria mais se fosse “Pela ilegalização da homossexualidade”. E se fosse “Manifesto pelo exclusivo da utilização da abóbora-menina nas papas de abóbora”? Aí talvez passasses adiante apenas porque não saberias que a abóbora a utilizar é a abóbora-menina. Abóboras. Experimentemos outra: “Por uma América virgem”. Tenho a leve impressão de que captaria o teu olhar de cenho arreganhado. Sobretudo se não souberes que os nativos norte-americanos não nasceram lá: colonizaram o território vindos da Sibéria e do leste asiático através do estreito de Bering há mais ou menos doze mil anos. Pois, os Shoshone e outros deviam ser expulsos e deixar a terra para os coiotes e os búfalos. Tudo maluqueiras? Nem tanto.
Não me parece nada de extraordinário que a técnica comunicacional tenha influenciado a politeia. Também influenciou a vida amorosa. Hoje, um casal pode romper por sms; há trezentos anos, quando a mulher recebesse a carta com a decisão do amado até já podia ter uma criança (se o amado estivesse a minerar no Klondike e ela vivesse numa aldeia galesa, por exemplo). O que é necessário é discutir o modo como a técnica comunicacional influenciou.
Umberto Eco recorda as veline, as folhas de um tipo de papel que o regime fascista italiano enviava aos jornais, onde se ditava aos jornalistas o que se podia ou não podia dizer. Eco transporta as veline para o nosso tempo com uma modificação: à censura através do silêncio juntou-se a censura através do ruído. Este ruído, Eco, claro, vai procurá-lo “à internet”. Se o actualizarmos com as redes sociais (Eco escreveu estas coisas em 2011, já existiam mas agora estão diferentes), percebemos melhor a ideia do italiano. É o indivíduo que se informa no facebook, é “o imbecil que é incapaz de apreciar uma viagem de comboio lendo a paisagem ou lendo o jornal e em vez disso agarra-se ao telemóvel” (Umberto Eco, Construindo o Inimigo e outros escritos ocasionais). O que Eco propõe é o regresso ao silêncio. E ao murmúrio. É divertido, mas antes de continuar a malhar vejamos mais em pormenor: mesmo nos regimes mais opressivos, o povo sabia as coisas através do murmúrio. Por outro lado, diz que os grandes êxitos editoriais não se conseguem pelas recensões ou pela publicidade mas pela passaparola, pelo boca-a-boca. O que ele propõe é “o regresso ao silêncio, ao murmúrio, o único meio fidedigno de comunicação, (…) abordar a semiótica do silêncio”. É divertido porque é mesmo divertido. O texto é o de uma comunicação ao congresso de 2009 da Associação Italiana de Semiótica. Eco lembrou-se de pôr a anilha no parafuso, devem ter gostado, mas a diversão maior vem do lado do saudosismo. Ou do reaccionarismo? Propor um regresso ao passado em matéria comunicacional é o mesmo que querer substituir os carros pelas carroças. Assim, podemos ler a ideia de Eco com um grão de sal.
Regressando ao primeiro parágrafo deste texto: muito ruído nas propostas gongóricas, muito sucesso nas redes sociais elas fazem? O olhar de um psicólogo divergente vai por outro caminho: não é o ruído, é a simplicidade. As pessoas, e não é preciso dar exemplos histórico-políticos, gostam de coisas fáceis de entender e com as quais se identifiquem. Muitos crimes de massas foram assim facilitados, o leitor sabe isso muito bem. A verificação das fontes e a atribuição de credibilidade vale tanto no boato do facebook como no elevador do condomínio.
Na psicologia social, falamos de processo de naturalização. Um exemplo: o termo paranóia, inicialmente do terreno psi, foi adoptado e entrou na linguagem quotidiana. Como é óbvio, modificado. Por exemplo, em dia de jogo na Luz: estou com a paranóia de ir comer uns couratos. Interessa-me, portanto, mais a necessidade que as pessoas têm de conteúdo simples do que os decibéis do ruído. Até porque também existe murmúrio na tecnologia que tanto arrepela Eco: mensagens proibidas ou comprometedoras, páginas exclusivas para convidados, etc.
Como sempre no saudosismo, o problema acaba por ser o da extensão a um muito maior número de pessoas daquilo que antes era coutada de apenas alguns. Nos bons tempos que Umberto Eco refere, um restrito grupo de revolucionários versado nos manuais e inflamado por meia dúzia de slogans era capaz de influenciar um exército ou uma cidade. Quem está familiarizado com o Fialho de Almeida sabe que um mesmo restrito grupo de intelectuais podia demitir um ministro com base num boato (o tal murmúrio) impresso em jornais que só os outros intelectuais liam. Agora, o restrito grupo somos todos nós (sobram os velhos e pouco mais).
Gostamos muito da democracia, não apreciamos as espinhas.