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Hoje pus a tocar um disco. Já se estava a estragar fora do frigorífico mas ainda cheirava bem.
Gosto muito de música; há inclusive uma pessoa que quando me fala me considera um melómano de um certo ponto de vista. Há dias, no trabalho, do outro lado do open space, ouvi a Luísa perguntar o que era aquele som que ainda não tinha parado de tocar desde a manhã, e eu saltei da cadeira, levantei a mão, sacudi as migalhas da camisa, pisquei-lhe acho que só um dos olhos e projectei a voz para que todos me ouvissem exclamar que não se preocupassem, que eu tinha uma prescrição do otorrino para usar auscultadores sem controlo de volume em virtude de um episódio nos karts de Almancil em que perdi oitenta por cento da audição do lado esquerdo, e percebendo pelo silêncio dos meus colegas que talvez pudessem estar interessados em saber o que eu estava a ouvir, avisei que a minha predilecção teria de ir para quartetos de calimba noruegueses, sobretudo do último triénio da década de 90, mas também para anúncios de desodorizantes, trap gregoriano – enfim, de tudo um pouco, desde que fosse reproduzido a mais de 76 dB e não envolvesse quartas aumentadas. «O trítono dá-me a volta à tripa», disse-lhes, mas acho que só a Mafalda, que tem prisão de ventre e gosta de feiras medievais, percebeu a piada.
Saio todas as semanas para comprar a Pitchfork, embora a dona da papelaria já me tenha alertado para o facto de a publicação ser trimestral e um site na Internet. Na semana passada, apanhei uma boa recensão, recortei-a com o corta-unhas e guardei-a – não no frigorífico, não sou maluco nenhum, sei perfeitamente que ainda não comprei um frigorífico. A crítica dizia assim:
O novo álbum de Pingo Doce, Colaborador Chamado à Caixa Cinco, é a aguardada consagração do holandês luso-descendente no mundo da canção de hipermercado. O terceiro registo do autor dos Países Baixos reivindica-lhe em nome próprio um lugar ao sol entre as grandes cadeias de distribuição, elevando a fasquia no que concerne à qualidade-preço e aportando renovadas esperanças aos retalhistas lo-fi. O autor de temas como «Descontos em Cartão» ou «Deseja Factura?», hinos entoados durante a última década na cena underground das lojas de conveniência do eixo Bristol-Morais Soares, reinventa agora o espaço cardinalmente ambivalente da sua criação artística, explorando de modo destemidamente comprometido as inferências político-auditivas decorridas, como nós temos apercebido, entre a aquisição por atacado e a venda ao consumidor.
O disco foi gravado na mítica ala dos ultracongelados (o que explica as sonoridades mais frias), numa total ruptura com os arranjos secos e crus dos álbuns precedentes, dando agora prioridade às melodias, às grávidas e aos bebés de colo – note-se a influência da secção de frescos, evidente nos temas «Gengibre Não Temos» ou «Compre o que é Nosso».
Pingo Doce não deixa pedra sobre pedra: no tema mais longo do álbum, «Dumping», a parceria com a velha-guarda que orquestrou os arranjos da fátua carreira discográfica dos Pão de Açúcar (a mesma velha-guarda que, como se lembra quem os acompanhou na altura, produziu os primeiros EP dos Supermercados AC Santos) revela sem surpresas a singularidade do seu timbre grave e troante, a preços particularmente competitivos. A aspereza do spoken word manifesta-se plenamente na faixa inaugural, que dá o nome ao disco: «Colaborador Chamado à Caixa Cinco» é canção-diamante, preciosa e infame (andaremos anos a entoar os versos «Solicita-se a comparência de colaborador/ À secção de padaria», ou, adentrando-nos no refrão: «Patinadora à caixa sete/ Patinadora à caixa sete/ Obrigado»).
Cabem mundos neste Colaborador… – todos os mundos que cabem no génio de Pingo Doce. Cabe a electrónica sublime de «Tapete Rolante do Registo» ou a pop iluminada de «Sou Só Repositor». Cabem a polifonia atonal de «Marca Branca» e o inevitável pregão de «Peixaria». Mas o maior feito deste lançamento pode bem ter sido pôr-nos a pensar, colectivamente, que é possível e tomado por louvável manter uma cadeia de interdependência tóxica entre produtores, fornecedores, colaboradores, consumidores, comunidades locais e demais stakeholders quando o Lucro dos Accionistas se confunde com o Foco no Cliente e o branding vocacionado para uma identidade de comércio tradicional social e ecologicamente responsável é outro nome para Que se Foda, Quero Mais.
Leram aqui primeiro: Colaborador Chamado à Caixa Cinco, em boa hora lançado pelo glabro luso-flamengo (mais uma aposta acertada da Jerónimo Martins, editora alternativa a dar cartas em Roterdão), é uma desarmante ode à deriva antagónica de um certo modo de ver a vida, ideal para acompanhar carnes vermelhas ou caça.
Colaborador Chamado à Caixa Cinco
Pingo Doce
Jerónimo Martins Records
★★★★
Gostei, mas continuo a achar que os críticos de música vão pouco ao Intermarché.
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Hoje, no quadro de cortiça da copa:
7 PALAVRAS-CHAVE PARA O SUCESSO
Competitividade
Confiança
Focalizar
Capacitação em termos de soft-skills
Palavra-chave
Avareza
Soneca
Nunca me lembro do sétimo pecado mortal: gula, luxúria, preguiça, avareza, orgulho, preconceito… E, agora que penso nisso, nunca me lembro do sétimo elemento de uma lista de sete elementos. As Grandes Pirâmides do Egipto, os Jardins Suspensos de Babilónia, as Portas de Ródão…
Às vezes penso na vida que me poderia ter sucedido se não houvesse morado toda a vida em números 6. A casa da minha mãe era o 6. A casa onde o meu padrasto morou de 1989 a 1992 era o 6. A casa onde hoje moro e que também é a casa que era da minha mãe é o 6. Nunca morei em números abaixo de 6, nem acima de 6. Aliás, sempre morei nesta casa, que só é o 57B desde que construíram o Begónias Plaza no fundo da rua. Mas ainda consigo ver, debaixo da plaquinha de PVC, o 6 que o sol e os escapes deixaram marcado na pedra-lioz.
O 6 é um número doce, aveludado, almiscarado, corcunda, barítono. Ninguém dá por ele quando o 7 está presente. Sente-se intimidado, mede as palavras, tenta ser mais do que é, vê-se de fora, de cima, da ponta para a barriga. A Luísa também gosta do número 6.
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Hoje acordei e dei com estas palavras escritas a caneta de feltro na fronha:
O que se há-de gravar no teu epitáfio:
«Aqui jaz Rui Teixeira.
Ruis Teixeiras há muitos.
Como este, no máximo dois, ou três.»
A letra era minha. E de facto lembro-me de acordar a meio da noite sorumbático, pensando na morte. Acto contínuo, vieram-me à cabeça momentos do sonho que estava a ter.
Eu era Fredson Rocha, vendedor ambulante de cactos e suculentas numa cidade portuária escarpada de pequena dimensão. Ao lusco-fusco, escolhia da minha estufa o exemplar com os verde-e-roxos mais exuberantes, arrancava-o da terra, envolvia-lhe as raízes com um saco de plástico e apanhava o autocarro, com a planta na mão, rumo aos bares e restaurantes do centro da cidade.
No primeiro, dancing com motivos náuticos e um bar forrado a cacos de espelhos, fui corrido à vassourada pelo empregado que passava uma esfregona na pista, húmida da noite anterior.
– Fredson Rocha, voltas a aparecer aqui e racho-te o queixo em dois.
– Obrigado, a continuação!
No segundo, rodízio de peixe e marisco, a cozinheira apanhou-me nas traseiras:
– Se o Marco te apanha conta-te da planta que aí deixaste, durou uma semana e passou pulgão à salsa decorativa.
Apagou o cigarro com a biqueira de aço branca e entrou para grelhar meia-dúzia de lingueirões.
No terceiro, bar familiar gerido pelo viúvo de um capitão da terra, dois adolescentes transpirados namoravam em crioulo e bebiam grogue à janela. Aproximei-me, mostrando a minha kalanchoe daigremontiana.
– Olá, amigos, obrigado, sim? Desculpem incomodar, sim? Meu nome é Fredson Rocha e esta daqui chama-se mãe-de-milhares.
Nessa altura, lembro-me de abrir os olhos e de me espantar que em sonhos soubéssemos tanto sobre tanta coisa.
– Estudei alvenaria, economia, belas-artes. Tudo. Com as três cores primárias consigo pintar um arco-íris. Violeta, azul, azul-clarinho, azul-esverdeado…
Os adolescentes pareciam interessados na suculenta, porque não me olhavam nos olhos.
– Três tipos de verde! Verde-esmeralda, verde-escuro, amarelo. Não querem comprar, não tem problema, é muito bonita, fica para mim. Obrigado, sim? A continuação.
A partir daqui não sei se sonhei, se ouvi nas notícias a história de um cão rafeiro encontrado a boiar numa porta, não se sabia há quantos dias, ao largo da ilha de São Vicente. Chamava-se Estomperote.