Ganhar a vida
1.
Fui levantar dinheiro às quatro da manhã na Rua do Rosário, que por acaso é o nome da minha mãe. Quando saiu o cartão, apareceu um moço por trás que me disse – dá-me o cartão. Não fiquei nervosa, dei-lhe o cartão. Ele inseriu-o na ranhura e pediu o código – trinta, trinta e dois. Eu fiquei sempre ao lado dele, tranquila, esperando o grande assalto. Mas no ecrã apareceu escrito “Operação não disponível”. Um talão impresso tinha os números do saldo da minha conta bancária: seis euros e vinte e dois cêntimos. O assaltante olhou para mim, desiludido, e seguiu caminho. Eu voltei ao bar, sem dinheiro no bolso, mas com dinheiro suficiente no cartão para mais duas ou três cervejas.
2.
Tinha vinte e oito anos a primeira vez que tive quatro dígitos na minha conta bancária. Na altura, não tinha aplicação do banco no telemóvel. Todos os dias metia o cartão na caixa de multibanco só para ver no ecrã os quatro dígitos escritos do lado esquerdo da vírgula. Nunca imprimi o talão porque me convenceram de que se poupar aquele quadradinho de papel salvo o mundo.
3.
A segunda vez que pensei em ganhar dinheiro tinha nove anos, meti-me num comboio com a minha melhor amiga e a mãe dela e vim até Lisboa fazer um casting para entrar na novela da TVI “Filha do Mar”, protagonizada pela Dalila Carmo, que seria a minha mãe. Durante muito tempo, acreditei que só não fui escolhida porque respondi no formulário “Pintar o cabelo de vermelho” à pergunta “O que jamais farias?”. A primeira vez que pensei em ganhar dinheiro foi uns anos antes, devia ter seis anos e, com essa mesma amiga e a sua mãe, fui ao casting para um espetáculo do Filipe La Féria no Coliseu do Porto. Cantei a “Falésia do Amor”, dos Santa Maria – canção que ainda hoje me entristece quando a ouço.
4.
No dia um de maio de dois mil e dezoito subi a Avenida Almirante Reis até à Alameda. Era trabalhadora, tal como sou hoje. Era o primeiro dia do mês e o dinheiro que ganhei a trabalhar já tinha sido todo distribuído: duzentos e cinquenta euros para a renda do quarto; cento e noventa euros para a propina do curso que estava a tirar; setenta e oito euros para o passe, água, luz, internet e uma ida às compras. Não há twist nesta história, é só mesmo assim, precária, como a maioria das pessoas.
5.
Às vezes pondero candidatar-me ao BigBrother, não só porque seria uma grande tática entrista* de chegar a muitas casas portuguesas com o chamado marxismo cultural, mas porque acredito que seria uma grande candidata aos cinquenta mil euros. Não sei como é que ainda nenhuma pessoa se sacrificou para ser o Jean Wyllys português, ou como é que partidos tipo o POUS ainda não adotaram essa estratégia. Mas atenção, imaginando que um dia vou e ganho, é tudo para mim – está fora de questão financiar a luta amada.
*tática política trotskista em que uma organização mobiliza os seus membros para se juntarem a uma organização maior com o objetivo de expandir a sua influência, ideias ou programas; muitas vezes uma estratégia não assumida.