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O folhetim Alberto Manguel

Do pouco que se sabe acerca de Alberto Manguel, há dados que necessitam de ser confirmados.  Mas, de modo geral, será sempre necessário escrutinar o figurão em causa, uma vez que lhe foram concedidas condições de privilégio, pelo menos à escala da Câmara Municipal de Lisboa. Os dados mais seguros, e mesmo esses carecem de verificação, são os seguintes: nasceu em Buenos Aires, em 1948, passou a infância em Israel e a adolescência na Argentina; quando frequentava o Colegio Nacional de Buenos Aires e trabalhava na livraria Pygmalion, entre os 16 e os 20 anos, de 1964 a 1968, foi convidado a ler para Jorge Luis Borges, que era cego e foi director da Biblioteca Nacional da Argentina; teve uma preceptora alemã que sobreviveu a Auschwitz; concluiu o liceu em 1966; aos vinte e poucos anos trabalhava num jornal em Buenos Aires, embora também afirme ter saído da Argentina aos 21 anos, ou seja, em 1969, por razões pessoais e não políticas, assumindo que não foi um resistente à ditadura militar e que voltou uma vez à Argentina durante esse período; quando já vivia no Canadá, na década de 1980, foi enviado a Roma para uma reportagem, pela revista Saturday Night (Uma história da curiosidade, caps. 3, 8, 12, 16, 17). 

Em 1975, conforme declarou no prefácio a uma edição recente de Cem Anos de Solidão, era um “exilado peripatético (…), um escritor jovem sem dinheiro”, que conseguiu entrevistar García Márquez em Barcelona; através de uma nota da universidade de Anglia Ruskin, que lhe conferiu um título honorífico, sabe-se que, depois de ter vivido na Europa e no Pacífico Sul, onde trabalhou como editor, se instalou no Canadá em 1982, tendo-se tornado cidadão canadiano e passado a escrever em inglês para jornais, rádio e televisão; o seu primeiro livro de maior projecção, Uma história da leitura, resultou de uma investigação levada a cabo durante sete anos, no Canadá, e conheceu uma primeira edição em inglês, em 1996 (com tradução, pelo menos, para francês, castelhano e português, dois anos depois).  

Mais tarde, Manguel foi director da Biblioteca Nacional da Argentina durante dois anos (2016-2018), na presidência de Mauricio Macri (2015-2019), que representava uma coligação de direita. Depois disso, trabalhou como guia ou conferencista em cruzeiros de milionários; entretanto, recebeu vários prémios e galardões (Guggenheim, Comandante da Ordre des Arts et des Lettres Formentor, Alfonso Reyes, Gutenberg, Oficial da Ordem do Canadá, entre outros); e foi feito doutor honoris causa pelas universidades de Otava e York (Canadá), Liège (Bélgica), Poitiers (França) e Anglia Ruskin (Reino Unido).  

Quanto ao resto, sabe-se pouco da sua identidade como escritor, tradutor, editor, crítico e jornalista, para além de ele próprio se afirmar como colecionador de livros, em quantidade. Que trabalhos teve Manguel, até ter conseguido viver só da escrita, coisa que não parece ter acontecido antes de ter completado cinquenta anos? A este respeito, apenas se conhece um seu desabafo: “quando fiz 50 anos, deixei de contar os lugares em que tinha vivido” (Uma história da curiosidade, cap. 9). 

Sem nunca ter frequentado a universidade, como revelou numa entrevista e pode ser considerado um aspecto salutar face a tantos académicos enredados no bafio das suas rotinas, em que condições desenvolveu Manguel o seu autodidatismo? De todo o modo, não basta declarar a sua modesta marginalidade ou até subserviência em relação à universidade e aos académicos, especialistas nos assuntos a que ele também se dedica; uma vez que a história da leitura se constituiu como um dos campos mais dinâmicos dentro da academia, o que mais importa é perceber em que pontos inovam os livros de Manguel – uma tarefa que não se afigura fácil de descortinar…

Por exemplo, Uma história da leitura de Manguel é um livro que pode e deve ser lido como uma colagem de citações, sem um argumento principal. Tão-pouco se constitui numa obra com capacidade para encetar um debate. Um ensaio, por isso, medíocre e que chegou tarde e a más horas a um campo que foi extremamente dinâmico no último quartel do século passado. A sua consulta e recepção revelam que poucos se deram sequer ao trabalho de criticar esse livro, o qual tinha sido antecedido por inúmeras propostas relativas à construção de uma história da leitura: desde a discussão sobre os sistemas classificatórios lançada por Michel Foucault, com base numa taxonomia chinesa imaginada por Borges, em As palavras e as coisas (1966) ao Orientalismo de Edward Said (1978); da micro-história de um moleiro escrita por Carlo Ginzburg, em 1976, à sua apropriação pelos historiadores Natalie Zemon Davis, Peter Burke, Roger Chartier e Robert Darnton; da teoria da recepção de Hans Robert Jauss e dos ensaios de Wolfgang Iser às generalizações sobre os efeitos do capitalismo de imprensa por Benedict Anderson em Comunidades imaginadas (1983); da série de estudos de Habermas, que culminaram na proposta de uma teoria da acção comunicativa, aos desafios lançados por Quentin Skinner, centrados na reconstituição da intencionalidade dos autores. A lista poderia ser aumentada, para incluir os ensaios de Umberto Eco e de muitos outros.  

Sem confundir o sucesso alcançado por uma obra com o seu valor intrínseco, os livros de Alberto Manguel começaram a ser traduzidos para português no mesmo ano em que saíram as outras traduções do inglês de Uma história da leitura. Assim, desde 1998, a sua entrada num circuito internacional projectou as obras de Manguel para Portugal. O seu melhor livro, de novo um inventário, é o Dicionário de lugares imaginados (2000). Foi escrito em colaboração com Gianni Guadalupi, um bom conhecedor e colecionador de livros sobre viagens, reais e imaginárias.   

Mesmo reconhecendo o pouco que se sabe acerca de Manguel, cidadão canadiano e figurão das letras de grande circulação internacional, foi a chamada “operação Manguel” – nas palavras do crítico João Pedro George – que suscitou a minha curiosidade. A doação da enorme biblioteca de Manguel à Câmara de Lisboa levou George a levantar um conjunto de questões, primeiro na revista Sábado, depois no seu livro Chatear o Camões: inquérito à vida cultural portuguesa (Maldoror, 2021). Desde então, Alexandre Pomar no Facebook e António Guerreiro no jornal Público também colocaram as suas reservas, para dizer o mínimo acerca de uma operação que é urgente escrutinar.  

Pela minha parte, apesar de me ter interessado pela história da leitura – na sequência dos seminários de Chartier, que frequentei nas décadas de 1980 e 1990, em Paris, e de ter estado envolvido numa das suas primeiras traduções para português, um livro que inaugurou uma colecção onde foram publicados outros historiadores interessados nas práticas de leitura (Ginzburg e Burke) –, confesso que nunca me interessaram as obras de Manguel. O mesmo desinteresse voltou a estar presente quando coordenei uma equipa de jovens investigadores, de que resultou um tomo intitulado Estudos de Sociologia da Leitura (Fundação Calouste Gulbenkian, 2006).

No entanto, seria injusto não reconhecer que Manguel cumpre o seu desígnio de se promover aqui e por esse mundo fora, numa operação de marketing que se irá constituir, num futuro próximo, num autêntico case study ou num caso de risota com os mesmos contornos do Conde de Cagliostro (salpicado, talvez, pela mesma capacidade sedutora do Capitão Roby). Contudo, seria injusto apontar o dedo só a Manguel. O problema pode até não estar nele, mas neste pequeno meio em que vivemos, cujo provincianismo fomenta o deslumbramento por este género de personagens. 

Como se explica, então, o encontro entre Manguel, o historiador da leitura, e o que por aqui vai de relações pessoais e interesses ditos culturais? Algumas imagens e entrevistas talvez não forneçam uma resposta cabal, mas pelo menos ajudam a alinhavar uma explicação. Por um lado, é indiscutível que o ex-director da Biblioteca Nacional da Argentina revela, cada vez mais, o cuidado que tem com a sua imagem, sempre que se deixa fotografar. Por outro lado, as suas mais recentes declarações numa entrevista a Florent Zemmouche (um jornalista que desconhecíamos) constituem um verdadeiro pitéu que deixa perplexo qualquer leitor. 

Da assinatura do protocolo de doação dos 40 000 volumes à Câmara Municipal de Lisboa, uma fotografia principal registou o momento mais alto de 12 de Setembro de 2020. Tal aconteceu quando Manguel entregou a Fernando Medina um livro da sua biblioteca e ficaram os dois agarrados ao volume. No simbolismo do acto, os dois figurões vestidos de azul quase reproduzem com as suas mãos a célebre criação de Adão por Michelangelo, que pode ser vista na capela Sistina. A passagem da Bíblia que a inspira é a da criação do Homem por Deus. No sorriso dos dois intervenientes, está todo um mundo em criação: Medina em fim de mandato procurava alcançar, através de uma aliança com Manguel, uma espécie de Olimpo cultural internacional (pois constara-lhe que as relações deste, por esse mundo fora, eram invejáveis e convinham a uma Lisboa cosmopolita); enquanto Manguel, autêntico Conde de Cagliostro new age, como já é chamado na Feira da Ladra, assistia à criação do seu novo mundo alfacinha, num livro pelo qual o nosso Nuno, que vende livros a um euro todos os sábados de manhã, nem isso pediria.  

Manguel já tinha dito, quatro dias antes, a 8 de Setembro de 2020, em entrevista publicada pelo jornal argentino La Nación, que o milagre criado em torno da sua biblioteca tinha acontecido, pois iria ser possível que a sua biblioteca, embalada cinco anos antes em França e guardada no Canadá, viesse a reaparecer em Lisboa. Por isso mesmo, não teve dúvidas em declarar “sinto isto como um milagre. Recuperarei o meu paraíso, no sentido borgeano de biblioteca, e a sua ressurreição ocorrerá no país dos antepassados de Borges. Coincidência mais feliz, impossível”.  

Ficaram, então, bem definidos dois tipos de evocações: por um lado, o carácter excepcional e transcendente que Manguel atribui a si próprio e à sua biblioteca; por outro lado, a preocupação constante que tem em aparecer associado a grandes nomes das letras. Entram nesta última categoria, sempre à cabeça, Jorge Luis Borges, para quem Manguel leu (mas quantos terão sido os leitores de Borges?), seguido de uma lista infindável que roça sempre os píncaros (nas suas entrevistas, Walter Benjamin ou Aby Warburg; quanto a escritores portugueses, merecem ser citados os grandes, tais como Saramago, Lobo Antunes, Eduardo Lourenço e Teolinda Gersão).  

Na defesa da sua biblioteca, cujas amostras parecem ser bem banais, Manguel tem necessidade de fabricar um mito sagrado, traduzido na linguagem bíblica do Paraíso e na associação ao prestígio de grandes escritores e intelectuais. Para elevar este mito, que raia o sobrenatural, os negócios terrenos são necessariamente fáceis de resolver. Não passam, aliás, de umas minudências às quais os seus parceiros se dedicam, com o único objectivo de que a biblioteca e o Centro de Estudos de História da Leitura floresçam em Lisboa, com ele como director e patrocinador máximo, no seu paraíso terrestre. Não é, por isso, de estranhar a facilidade com que todos os aspectos práticos aconteceram. Além disso, como também já escreveu: “o conceito de dinheiro escapa-me. Quando era criança, nunca senti que houvesse diferença real entre as notas do meu Monopólio e as que saíam da carteira da minha mãe” (Uma história da curiosidade, cap. 13).  

A explicação dada por Manguel afigura-se até bem convincente, mas acrescenta um dado novo às referências bíblicas e aos nomes de grandes escritores. Refiro-me aos políticos que o acolheram e lhe abriram as portas. Nas suas palavras: “Foi a minha editora Bárbara Bulhosa, da editora Tinta-da-China, quem iniciou o projecto. Sabia do destino dos meus livros que estavam em caixas desde 2015, porque tinha publicado em português a minha elegia, Mientras embalo mi biblioteca. Bárbara encontrou-se com o presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, com a proposta de instalar a minha biblioteca na sua cidade. A missão de Medina é converter Lisboa num grande centro cultural, tarefa já iniciada pelo seu predecessor, António Costa”. 

Noutro lugar, Manguel acrescentou mais pormenores: que em 2015 fora forçado (mas por quem?) a vender a sua casa e a embalar os livros, que foram enviados para um armazém no Quebeque; que os seus leitores lhe escreveram a mostrar a sua solidariedade, na busca de uma casa para os seus livros; tal sucedeu de Nova Iorque ao Quebeque, do México a Istambul e “até numa pequena povoação perto de Nápoles”; infelizmente, nenhum desses esforços deu frutos; por isso, concluiu, “eu já me tinha resignado à ideia de ter perdido para sempre os meus livros, e aceitara a ideia de que a minha biblioteca teria o mesmo destino que a de Alexandria” (Manguel, “Prefácio”, in Libório Manuel Silva, Bibliotecas/Libraries, vol. II, Famalicão: Centro Atlântico, Lda, 2021, p. 10).   

Faça-se aqui uma pausa para perceber como opera um autêntico construtor de mitos. Chegado a este ponto, Manguel não hesita em forçar os paralelismos e as comparações, como já vimos entre a sua biblioteca e o Paraíso ou a Biblioteca de Alexandria. Mas há, agora, um dado novo: tal como o actual primeiro-ministro quando era presidente da edilidade deu à Fundação José de Saramago a Casa dos Bicos, Medina, que lhe sucedeu na Câmara, foi o mecenas do seu palácio. Porquê? Porque “Medina entendeu imediatamente a importância internacional que teria um Centro para o Estudo da História da Leitura, que é o meu tema”.  

E continuou, em jeito de elogio à cidade e ao, então, presidente da Câmara, falando de Lisboa com as suas “magníficas” colecções de língua portuguesa, mais uma “eficiente” rede de leitura pública. Só lhe faltava uma “biblioteca multilingue” como era a sua. Por isso mesmo, sempre segundo Manguel, Medina propôs-lhe, directamente, um “extraordinário palácio”, que carrega consigo o nome do Marquês de Pombal para albergar a biblioteca e o referido centro. Tudo isto para que o público argentino do jornal que o entrevistou ficasse a saber que todas essas condições vieram com um orçamento para renovar o palácio, comprar mais livros, contratar “vários bibliotecários especializados” e, enfim, nomeá-lo director do centro.  

Frente a tamanha generosidade camarária, Manguel não poupa nos elogios a Medina: este passa a visionário, pela sua determinação em gizar um programa cultural para a cidade; é também tido como perentório na escolha do palácio, que surge conotado com o reformismo modernizador de Pombal (pouco importa que o mesmo só tivesse chegado às mãos da sua linhagem quase um século depois da sua existência), situado mesmo ao lado do Museu Nacional de Arte Antiga (como sublinhou na legenda a uma das fotografias em que se retratou a olhar para cima); enfim, Medina é apresentado como ombreando com o seu antecessor, para que Manguel fique a par do Nobel português.  

Tudo à tromba estendida. Os adjectivos multiplicam-se: magnífico, eficiente, extraordinário, como deverá ser um autêntico Paraíso Terrestre. Aqui não há modéstia nenhuma da parte de quem foi um autodidata e nunca pôs os pés na universidade.  Que os pobres argentinos aprendessem a lição! Manguel bem tentara, quando esteve à frente da Biblioteca Nacional do seu país, mas a crise não lhe deu o orçamento pretendido para as actividades de fôlego que, só agora, poderá desenvolver, sempre com o apoio da Câmara de Lisboa. E que os argentinos se conformem com o facto de lhes não ter doado a sua biblioteca, pois nunca eles conseguiriam dar-lhe as condições criadas pelo fabuloso Medina – um Midas de rasgo! 

Manguel e Medina tiveram, pois, razões de sobra para sorrir e partilhar uma felicidade que tem tanto de ritual como de troca. Enquanto um entra com o palácio e o orçamento, o outro oferece, mais do que a biblioteca, a construção do mito acerca da mesma e, claro, a sua imagem.  

Foi António Guerreiro (Público) quem explicou o topete em que se baseia o mito da biblioteca deste romancista e ensaísta de segunda categoria. Na entrevista a La Nacion, Manguel reforça o mito com outros elementos. Por um lado, define a sua biblioteca como sendo labiríntica e, “como qualquer biblioteca privada, muito ecléctica”. Não sei bem em que sistema de correspondências Manguel baseia esta última ideia, que parece revelar um desconhecimento profundo da história das bibliotecas. É que, em face das bibliotecas de instituições que procuraram cobrir os mais variados assuntos, a começar sempre pelos teológicos, a multiplicação de bibliotecas privadas correspondeu ao processo de uma maior especialização. 

Por outro lado, aquele que se auto-intitula de grande bibliófilo não hesita em equiparar-se a Walter Benjamin, no acto de desempacotar a sua biblioteca, e a Aby Warburg o qual, quando abriu os seus livros ao público, ficou louco e teve de ser hospitalizado. É que, mesmo que Manguel esteja disposto ao sacrifício (que contribui para a instauração do mito), de devolver os seus livros à vida, o mito que pretende construir oscila entre o segredo e a sua revelação. Conforme declarou: “abrir a tua biblioteca pessoal, essa coisa tão íntima e secreta, a um público desconhecido, é um pouco como deixar entrar estranhos na tua mente, deixar que outros tomem posse da tua memória, da tua imaginação, da tua alma”. 

Pode e deve o construtor de um mito ser denunciado como megalómano, narcisista, que se convenceu a si mesmo de que podia reinar nas alturas, nos píncaros celestes da ficção que criou, sempre no cumprimento de uma missão elevada. Pode o mesmo construtor temer, com toda a razão, que corre o risco de vir a ser internado num hospital psiquiátrico, tanto mais que nas redes sociais – graças a um trabalho sistemático de denúncia, como o que tem sido exercido, e bem, por Alexandre Pomar – já são muitos os que lhe descobriram a careca. Mas, mais importante do que toda essa personalização do mito e respectiva denúncia, parece ser o exame das condições em que todo este processo tem decorrido. Isto porque a responsabilidade pela criação das mesmas condições deverá ser imputada, sobretudo, a Medina, aos seus sucessores e aos cidadãos que, apesar de se fazerem representar na Câmara de Lisboa, assobiam para o lado, como se a patranha fosse uma mera invenção dos críticos que gostam de dizer mal.    

Se existiram motivos de sobra para se duvidar do Conde de Cagliostro, cujas proezas internacionais o levaram a ter uma recepção em Portugal tão entusiástica, quanto provinciana, argumente-se que o deslumbramento de Medina em face do novo Cagliostro não foi menor. No pequeno meio da cultura lisboeta, porquê dizer mal dos construtores de mitos que se vão acumulando e sucedendo? É sabido que, no contacto com a literatura, a melhor forma de detectar tais mitómanos está na sua obsessão em entrar na literatura através de repetidas referências aos outros grandes escritores e intelectuais, a começar pelos clássicos.    

De novo, impecavelmente vestido, com a barba e o cabelo aparados de forma irrepreensível, Alberto Manguel surge, agora, com chapéu, camisa aos quadrados e casaco no anúncio de um novo curso inteiramente dedicado à leitura dos clássicos. A Tinta-da-China e o jornal Público promovem uma série de cinco longas palestras, com introito, seguido de comentário aos poemas de Homero e Dante, e a fechar a leitura dos romances de Cervantes e Mary Shelley. De novo, faz-se sentir o cuidado com a imagem, ao mesmo tempo que é notória a capacidade para articular o conservadorismo associado aos clássicos, com a descontração de quem sabe usar uma camisa aos quadrados e um chapelinho de conotação ambígua.  

Tudo isso – mas sobretudo o cuidado no parecer bem – faz desta imagem uma das melhores do ano. Não estou a insinuar que disputa a primazia com a t-shirt de Zelensky, mas está ao nível da capa da Visão com António Costa. De qualquer modo, ao contrário do que acontece com as outras imagens (Costa ou Zelensky) esta fotografia não é uma construção que se tivesse imposto ao retratado. Ela corresponde a uma intenção, bem vincada, do próprio. É que Manguel sabe muito acerca de imagens e tem a noção exacta de como é possível captar vários públicos. Por exemplo, o chapéu pode ser austríaco, insinuar até que acompanha com uma peninha, mas também pode ser usado por um negro, músico de jazz de uma qualquer dixie band.   

Com o comentário, breve e desigual, a duas imagens de Manguel e a algumas  entrevistas que deu, a jornalistas que contribuíram para a sua promoção internacional, junto-me ao coro dos que têm sérias dúvidas sobre o processo que está em curso. Alexandre Pomar, António Guerreiro e João Pedro George têm tido a coragem de denunciar que o rei vai nu. Mas o certo é que, no meio desta pasmaceira – onde a morte, que merece sempre respeito, de um ex-funcionário da contra-informação do SNI, gerou consenso, quase total, fundado na ignorância acerca do passado do jornalista Merga Ferreira, também ele o maior e mais erudito de todos os intelectuais –, quem denuncia e diz mal é sempre acusado de querer entrar em polémica. Ou seja, de querer romper com o consenso fundado na ignorância em que muitos procuram viver, para tratar… das suas  vidinhas.

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A primeira parte deste artigo foi publicada no jornal on-line Contacto de 6-12-2022

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