Com a desagregação da União Soviética pelo início dos anos noventa do séc. XX, Cuba passou mal, naquilo que ficou conhecido como o período especial. Alguns tentaram a todo o custo sair da ilha. Os que ficaram passaram mal, ou pelo menos pior do que estavam antes. Os mais velhos tiveram mais tolerância. Os mais novos menos. As manifestações de protesto na marginal de Havana ficaram famosas, embora menos do que a crise dos balseros. Carlos Varela tinha acabado de publicar uma canção intitulada “Guillermo Tell. Sim, o da maçã. Basicamente fala da vontade do filho de Guilherme de lançar ele a flecha, em vez de pôr a maçã na cabeça. E fala dos receios do pai e de como este o impede de lançar a flecha. Em Havana, naquele período, esta canção tornou-se um hino da juventude, cantada a milhares de vozes, como um grito de vontade de mudança e de forçar o regime vigente a deixar cada um daqueles jovens contribuir para o seu futuro e para o futuro da ilha. Tal e qual como quando o filho acaba de tirar a carta de condução e o pai vai ao lado a gritar e a dar indicações sobre tudo, cheio de medo.
Cá pelo burgo, com a revolução dos cravos, tivemos uma geração muito jovem que foi chamada a ter funções de muita responsabilidade muito cedo na vida, uma vez que foi necessário cortar com o antigo regime. Muito poucos foram aproveitados na democracia, como os deputados da ala liberal. Tivemos ministros antes dos 30 anos, diretores-gerais com vinte e poucos e toda uma classe dirigente do país que nele mandou dezenas de anos. Alguns ainda mandam.
Graças aos progressos na medicina e na qualidade de vida em geral, envelhecemos melhor e podemos estar bem até muito mais tarde. Queremos ser ativos e muitos de nós, mesmo em idade de jubilação seguimos a vida profissional como se nada fosse. Mas como se trata de gente que está no topo da sua carreira há dezenas de anos, o sistema hierárquico de tomada de decisão tem enormes dificuldades em renovar-se. E isso nota-se. Muito. Nota-se na cristalização de várias estruturas, entidades ou instituições, nota-se na infantilização dos titulares de poderes intermédios, que de poder não têm nada, mas sobretudo nota-se na frustração de todos esses “filhos do Guilherme Tell” por, na altura devida, não poderem dar o seu contributo para os destinos da sua profissão, da sua sociedade, ou do seu país da forma normal que poderiam dar se houvesse uma sã evolução de carreira. É certo que temos a geração jovem mais formada de sempre, mas estarão os seniores na disposição de abdicar de mandar? Na maioria dos casos não.
“Eh, pá! O Amílcar reforma-se para o ano e eu já o convidei para vir para aqui trabalhar. Já sabes que me dou bem é com malta da minha geração. Estes gajos mais novos não sabem o que é a vida! Tiveram tudo de mão beijada e deu nisto. Quando morrermos está tudo perdido…”. Duas notas: estão a falar de “gajos” de 50 anos e não, não está tudo perdido. Podem falecer descansados quando for a vossa vez que isto andará, umas vezes pior, outras melhor, como aliás foi no vosso tempo e em todos os tempos.
Deixar de mandar não está ao alcance de todos e, por muitos regulamentos que façamos, o cume da montanha hierárquica não tem descida. É um pequeno planalto mais ou menos dourado em que só se olha para baixo. E o pescoço ganha calo. Olhar, nem que seja em frente causa frustração e às vezes uma certa dor. É pena. Todos perdemos. Seria bom podermos continuar a olhar para a montanha no seu todo, descansadinhos da vida, orgulhosos do caminho que os novos escaladores estão a trilhar e pensar que se calhar humildemente ajudámos a que a montanha esteja mais bonita no seu todo. E que agora existem outros muito mais capazes do que nós para cuidar dela. E que cá estaremos para os aconselhar e dar colo quando eles entenderem. E que ficaremos felizes assim…
Qual quê!