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Marco Aurélio at Austin

Vez por outra, os periódicos publicam artigos de opinião enfeitados com esta oração subordinada adverbial: “Quando eu estava no Estados Unidos a fazer o doutoramento… ” Aqueles de nós que nunca estivemos nos Estados Unidos a fazer o doutoramento, porém sabendo da escola que a oração subordinada, por definição, não prescinde de subordinante, logo pomos os  olhos a correr rápido pelas linhas na expectativa de encontrar coisa de certa magnitude: por exemplo, «tornei-me supremacista branco» ou «mudei de ideias quanto a ter armas em casa e nunca mais fui caçar com o Manuel Alegre». Ora, em regra, o que nos espera é decepcionante; quase sempre platitudes como «percebi que lá tudo é diferente», ou banalidades apenas dramáticas como «um sujeito perguntou-me as horas e embaracei-me a dizer-lhas». Instala-se então — e permanece — a suspeita de que a oração subordinada é que é a principal, vindo disfarçada de circunstancialidade acessória quando é ou se pretende que seja — essencial. Do estrito ponto de vista retórico, esta torção tem apreciáveis vantagens, sendo a maior delas o efeito de desmetafisicar a sintaxe.

Dito de outro modo, nem sempre o adverbial é acessório, não estando por isso obrigado ao essencial; pode ser apenas substantivo, no sentido que os juristas dão à palavra. Olhem, até tenho bom exemplo, porque foi esse o caso do email que ontem recebi de uma colega de Telavive, a Ayelet, académica brilhante que escreve e fala português tão bem como qualquer dos que falamos sofrivelmente. A Ayelet foi fundadora e continua activista destacada da Internacional da Facécia, onde não consegui ser admitido, por via de invejas e cavilações, não obstante o parecer favorável da mesma Ayelet. Pois o email começava assim: «Quando eu estava nos Estados Unidos a fazer o doutoramento…» Estremeci. Os emails da Ayelet são primorosos, no afecto e na gramática… e como ela os combina ambos e ambas! como ela se desembaraça entre o emaranhado de masculinos e femininos, comuns de dois, uniformes, epicenos, todos e todas, preposições e palavras a custo discerníveis, e sempre, mas sempre! originalíssima… como podia ter caído no medonho cliché?!

Acontece que não pôde; acontece que não caiu. Foi surpreendente, mas por outros motivos; e mais surpreendente do que abrir uma arca antiga e encontrar nela o cadáver do administrador do condomínio. Não seria indispensável à clareza do episódio, mas preciso de esclarecer que este email era esperado há vários dias em resposta a um dos dois que lhe escrevi sobre certos problemas de marcha, caminhada, alongamentos e outras matérias a que não me dedico, mas ela sim, e por via disso a curiosidade me levou a simular um interesse falso ou quase. Pois bem, o email chegou e a indicação da circunstância do tempo e do espaço revelou-se afinal necessária. Eis a frase completa: «Quando eu estava nos Estado Unidos a fazer o doutoramento, o meu pai foi visitar-me três ou quatro vezes com grande sacrifício pessoal.» Quem achar isto banal, quase merece a orfandade; mas a recriminação não vem ao caso. Continuo a transcrição: «Numa dessas vezes, um amigo de Haifa pediu-lhe para levar uma pequena encomenda para certo rancheiro do Texas, homem rico, grande proprietário e com as máculas inerentes: autoritário, arrogante, parece que racista, etc. O meu pai era um homem generoso e não conseguiu dizer ao amigo que, embora a filha estivesse na melhor universidade do Texas, at Austin (em inglês no original), o Texas é muito grande e entregar a encomenda implicaria desvio considerável. Entregou-a. O tal rancheiro recebeu-o com amabilidade moderada, agradeceu, realçou a importância da encomenda, e convidou o meu pai para um charuto no alpendre. Não houve grande conversa. O rancheiro pouco disse enquanto durou o charuto; entre proclamações políticas e a empáfia boçal, o espaço que lhe sobrava dedicava-o a exibir o orgulho na sua imensa propriedade. Ainda assim, lembrou-se de perguntar ao meu pai se lá em casa [relevem o anglicismo] tinha quintal, ou jardim, ou propriedade fundiária. E o meu pai, meio encolhido, respondeu que tinha uma horta pequenita, a dar mais despesa que proveito, onde plantava umas coisitas. O rancheiro encheu o peito de ar, abriu os braços e proclamou: ‘— Pois eu, tenho dias em que me meto no carro de manhã e à noite ainda não cheguei ao fim da minha propriedade.’ Ao que o meu pai respondeu: ‘— Compreendo, também já tive um carro desses’. Ora aqui tem como eu respondo às suas observações sobre marcha, caminhadas e alongamentos. O meu pai já então era assíduo na leitura de Marco Aurélio e pouco ele sabia [relevem o anglicismo] que tão bem viria a servir-lhe diante da arrogância do texano. Tire o meu amigo as conclusões que puder desta história; e se acaso se lembrar de a contar a alguém, não deixe de dizer que se passou numa das vezes em que o meu pai me visitou, quando eu estava nos Estados Unidos, at Austin, a fazer o doutoramento.»

Já vêem que cumpri pelo menos parte da imposição de Ayelet; a parte fácil. A difícil, não sei qual seja. Talvez tenha que ver com a tentativa de exemplificação do que vinha dizendo; terão presente que contei o caso a fim de ilustrar que o subordinado nem sempre é acessório. A lição a reter é que sem doutoramento em Austin não haveria deslocação ao rancho. Agora notem, por favor, que toda a relevância do caso resulta de o tópico da deslocação ter acabado caracterizador de uma conversa até ali inócua, a qual, por sua vez, resultou da deslocação do pai da Ayelet ao rancho do destinatário da encomenda. A lição a reter é portanto esta: quando se pensava que a lição a reter era que sem Austin não haveria deslocação ao rancho, aprendemos que sem deslocação ao rancho não haveria deslocação na conversa e sem deslocação na conversa o tópico da deslocação não surgiria em lado nenhum: nem na conversa com o rancheiro, nem no email da Ayelet, nem neste escrito. Logo, este escrito trata o tópico da deslocação, desde logo e singularmente, no momento preciso em que ocorre na conversa com o rancheiro, a que, como é óbvio, não assisti: e fica assim provado que sem o email da Ayelet eu não teria chegado aqui.

Julgo também comprovado que o acessório pode ser crucial, que o circunstancial pode ser determinante, e que o Texas pode ser um dos melhores lugares do mundo para deslocações. Rivaliza com aquela estrada de Minas em que o poeta Carlos Drummond de Andrade encontrou — ou diz ter encontrado — a máquina do mundo. Que se abriu para ele e ele desdenhou; ele ou o sujeito lírico, como em tempos se designavam os poetas que caminhavam pelas estradas e depois escreviam poemas sobre essa singularíssima experiência. Drummond — é caso para dizer: felizmente! — não era lírico quando caminhava; tendia para o enigmático: pedras no meio do caminho, pedras a deslocarem-se na noite, pedras com máquina no mundo a abrir-se… Aliás, a esta hora, Ayelet está longe de imaginar que a pequena história do pai me levou a descobrir o segredo da poesia de Carlos Drummond de Andrade, que me importunava há meses. Digo “levou” porque foi isso mesmo — va comme je te pousse! Fui conduzido a encetar novo caminho para chegar a perceber que o segredo — que o segredo está no caminho; e que no meio do caminho, como toda a gente sabe, tinha uma pedra; e que o caminho não se define nem pelo destino nem pelo caminhar nem pela companhia; define-se pela pedra, pelo obstáculo e ainda mais pelo obstáculo que faz abrandar, vacilar e enfim parar. O caminho faz-se a parar. Mas para perceberem isto, bom, para perceberem a relação disto com a entrega da encomenda pelo pai da Ayelet, teriam de ter estado nos Estados Unidos a tirar o doutoramento, como também se ouve por vezes. É que aqui ninguém se interessa por caminhos, pedras ou Drummond de Andrade; se acaso lhes falam em caminhar, perguntam pelos melhores ténis, ponderam se precisam de calções de lycra, e nos melhores casos tornam-se ciclistas ociosos a diminuir o tempo de écran.

Por outro lado… sim, por outro lado, não podemos continuar sem saber que Drummond encontra a pedra, topa com ela, percebe o significado dela, porque um anjo torto lhe deu o destino de ser gauche na vida. E um gauche na vida é isso: quando lhe falam em imensidão e estrada, caminho e território, todos e todas, ele fixa-se no obstáculo, e abranda, e pára, e depois continua até que outra pedra surja. A pedra no meio do caminho — é o caminho. Nem alongamentos nem coisa nenhuma! Marco Aurélio, por exemplo, essa luminária inextinguível, imagino-o a dizer sempre que desmontava: avanço na estrada quando sou obstruído na estrada. 

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