É lugar-comum que o domínio da roupa e dos tecidos seja tema de mulheres. Não está em causa se a realidade o demonstra ou o infirma – é um tópico literário, por exemplo, dos mais antigos e dos que mais perduram. A Penélope da Odisseia tecia a cada dia a sua espera por Ulisses (tecia depois de desmanchar de noite o tecido, estratagema para enganar os pretendentes que aguardavam a notícia da morte do marido para a ganharem): o vaivém do tear era veículo da sua angústia, do seu receio, mas da sua determinação, da sua certeza. Facto é que, durante séculos (ainda hoje, em tantos lugares), o trabalho das mulheres era de roupas: vestir, fazer arranjos, aproveitar tecidos, juntar retalhos, ornar de rendas. Se havia homens costureiros? Sempre os houve – o saber das agulhas também lhes era exigido, em tarefas mais duras, como costurar o cotão para as velas de barcos, de moinhos, para as redes de pesca. Nas imagens que as artes passam e com que formam as ideias nas cabeças das pessoas, porém, agulha e linha são coisas de mulher. (Outro dia, visitei com uma amiga uma livraria feminista em Madrid: livros de moda ou de costura, achámos um único, no meio de muito numerosas e bem fornidas prateleiras – sinal desta indesejada segregação?)
No curto filme-ensaio De la Femme (um dos escolhidos por críticos da revista Sight & Sound entre os melhores de 2021), Caterina Cucinotta e Jesús Ramé abrem com uma citação de Jean-Luc Godard em Histoire(s) du Cinèma: “Les uns pensent, dit-on, les autres agissent! Mais la vraie condition de l’homme, c’est de penser avec ses mains” – no fotograma seguinte, “de l’homme” é rasurado; à frente, em substituição, surge “de la femme”. Uma espécie de lembrete de que a costura dos figurinos que fizeram sobressair as figuras das deusas do cinema – dos filmes que formam também o pensamento –, ou tantas vezes a própria costura da película em que se imprimiam os filmes, era feita por anónimas mulheres. Por exibição convencional ou persistente obliteração, a mulher é frequentemente imaginada junto a uma máquina de costura, com um bastidor no colo, ao lado de um cesto de lã, com uma roca de fiar, cortando, tecendo, cosendo trapos, fazendo crescer e enfeitar os tecidos do mundo.
A “Ode Material” de Sharon Olds (n. 1942), um dos mais poderosos gritos de mulher, começa com uma invocação ao tule e ao tafetá, musas do fazer feminino. Canta-se “of fabrics and the woman”, dos tecidos e da mulher, e toda a narrativa (sobre uma traição, a indiferença do marido, o trabalho com os filhos, a vulnerabilidade e a dor da separação) se desenrola entre panos: cetim, veludo, “fucking velveeta”, o laço que ela ajeita ao pescoço do marido para o jantar (“the lace, the net”) onde ele se encontrará com a amante. As “armas e os varões” são “serapilheira” e “bordados a cinza”. Dos casulos roubados – lagartas que jamais serão borboleta – até à seda, da pele largada pela serpente em que o homem se transformou até ao babete dos filhos, tudo é superfície e cobertura, história extensa no tempo de mulheres que cegamente amaram, olhos vendados pelo mesmo pano que teceram, urdidura que cerra a rede de uniões desiguais. Mas o poema é canto, é voz (é silenciamento do homem, mesmo se é dele a única voz que se ouve, através do discurso dela – “[…] O meu marido / dissera-me que talvez me abandonasse – não / tinha a certeza, mas era provável, talvez – e não, não tinha / nada a ver com ela”). O tecido induz o texto.
Eu nunca estive em Macau; mas é como se lá tivesse estado. Minha alma conhece os panos das vestes das mulheres de Macau, tateia a textura de brocados como tateia a pele – porque os vejo adejar, adensar-se nos versos de Fernanda Dias. A “invenção do amante” (título de uma das quatro partes em que se divide o seu Rio de Erhu) é tecida, texturada (“sei que tenho sob os dedos / marfins polidos / brocados vermelhos”, “seda deslizante, / as mãos no teu flanco, / os ouvidos no abismo”). A própria poeta se constitui no pano – “e não sou senão uma mulher azul / azul-indigo desenhada no lençol” –, o momento de êxtase é “a renda da camisa rasgada no ombro” e o passado “as cortinas da janela da casa da minha avó / pavões brancos segurando grinaldas no bico”. Nunca estive em Macau, mas sei, pelas palavras dos poemas, de um amante oriental e dos rostos das “velhas com leques” no Largo do Senado, “seis faces de pura seda amarrotada” (Chá Verde), dos biombos e das cabaias que fazem pátria de um lugar desconhecido e remoto. Pelos versos sei que os dias não se querem “[…] certinhos dobrados na gaveta / imaculados como lenços de linho” (O Mapa Esquivo).
Quando conheci a Fernanda Dias, chinesa de Moura, alentejana de Macau, poeta e pintora, escritora e costureira, percebi que não anda separado o toque das mãos nos panos, as cores e as ideias. Conheci-a porque se apaixonou pelas árvores de um parque urbano e quis visitá-las. Escrevi para ela um poema – que foi para ela porque tem roupa estendida ao sol no varão improvisado de um terraço num arranha-céus nova-iorquino. Instalei-o por teimosia. E por querer manter a ligação entre o vento, o ar (mesmo poluído) e os tecidos que a minha pele cobririam.
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O poema que dediquei à Fernanda Dias foi publicado na revista Cão Celeste (Averno, março de 2018) e pode ser lido aqui.
Sharon Olds (2012). Stag’s Leap. Knopf.
Fernanda Dias (1999). Rio de Erhu. Macau: Fábrica de Livros.
——- (2002). Chá Verde. Macau: Círculo dos Amigos da Cultura de Macau.
——- (2016). O Mapa Esquivo. Macau: Livros do Oriente.
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Fotografia: “Papéis no fundo da caixa” – tinta acrílica sobre tela, de Fernanda Dias.