Nas televisões, nas newsletters digitais dos jornais, nos news feeds, nos posts, tweets e vídeos nas redes sociais, nos websites dos agregadores de conteúdos, em e-mails reenviados em massa, em split-screen, em janelas pop-up e deslizando em rodapé no écran, desfilam, ininterruptamente e sem ordem, hierarquia ou nexo, atentados terroristas, penáltis por assinalar, interpelações ao Governo pelos partidos da oposição, a fome no Corno de África, a atribuição anual de “estrelas” a estabelecimentos de restauração sob a égide de um fabricante de pneumáticos, penáltis incorrectamente assinalados, estimativas de crescimento do PIB na Zona Euro, o falecimento de um trompetista de jazz que ninguém sabia que ainda estava vivo e de cuja existência apenas um punhado guardava memória, o naufrágio no Mediterrâneo de uma embarcação decrépita sobrelotada com imigrantes africanos, a contratação milionária de um imigrante africano por um clube de futebol europeu, acusações de irregularidades na escolha dos finalistas do Festival da Canção, relatórios de comissões parlamentares de inquérito, conselhos para manter o vigor sexual após a andropausa, a descoberta de um quadro perdido de um mestre flamengo do Renascimento, a descoberta do corpo esquartejado de uma conhecida modelo, a descoberta de mais um exoplaneta na órbita de Proxima Centauri, a descoberta pelo CERN de uma nova partícula subatómica, a estreia de uma estilista portuguesa num evento de moda no Dubai, a estreia de um treinador português de ludopédio na liga principal do Uzbequistão, listas de alimentos que melhoram o trânsito intestinal, actualizações ao minuto do trânsito não-intestinal, uma entrevista com um chef que reclama ter criado todas as tendências da restauração em Portugal nas últimas duas décadas, o apuramento da selecção nacional de bubble football para o Campeonato do Mundo da modalidade, uma rapariga polaca que pretende ser uma criança britânica desaparecida há 20 anos, uma rapariga sueca que profetiza que a civilização será destruída por super-tornados e chuvas de enxofre, polémicas em torno da orçamentação e financiamento de um altar-palco com capacidade para 1000 bispos, debates sobre a constitucionalidade da lei que criminaliza as pessoas que vestem casaquinhos aos seus cães, um estudo científico que demonstra que tocar regularmente didgeridoo atenua significativamente a apneia do sono, o lançamento da marca de dermocosmética de uma vedeta da trash TV, a detenção do ex-marido da modelo esquartejada, a candidatura da “dança dos cus” de Cabanas de Viriato a Património Cultural Imaterial da Humanidade, estimativas de inflação na Zona Euro para o próximo ano, a exposição nas redes sociais, por uma conhecida influencer, da traição de que foi alvo pelo ex-companheiro (e célebre DJ), conselhos sobre como enriquecer depressa e sem esforço minerando criptomoedas, o reajustamento do Relógio do Apocalipse para os 90 segundos para a meia-noite e, last but not least, as sagazes e ponderosas considerações de Sua Excelência o Comentador-Geral da República sobre todos estes assuntos.
As redes sociais e outras plataformas de partilha de conteúdos na Internet e os sistemas de transmissão electrónica de mensagens escritas geram diariamente “500 milhões de tweets, 294 000 milhões de e-mails, 4000 milhões de gigabytes de dados do Facebook, 65 000 milhões de mensagens de WhatsApp e 720 000 horas de novos conteúdos no Youtube” (segundo o artigo “The World’s Data Explained: How Much We Are Producing and Where It’s All Stored”, in The Conversation, 04.05.2021). É este o fluxo informativo em que vive quotidianamente imerso quem elegeu os écrans como forma exclusiva de estar a par do que se passa no mundo e não tem paciência nem capacidade de concentração para nacos de informação que levem mais de meio minuto a ser deglutidos.
A minoria que ainda lê livros vê-se, adicionalmente, assoberbada por um copioso caudal de palavra impressa e encadernada, já que a indústria livreira, trabalhando num ritmo nunca visto na história da humanidade, coloca anualmente no mercado 4 milhões de títulos novos, dos quais cerca de ¾ são publicados pelo próprio autor, frequentemente no formato print on demand (ou seja, só é impresso um exemplar quando um cliente o solicita).
Há, todavia, que colocar esta avalancha de novos títulos em perspectiva: mesmo num país como os EUA, com 333 milhões de habitantes e um dos mais altos rendimentos per capita do mundo e onde um em cada dois habitantes possui um curso superior, as vendas anuais de cada título não excedem, em média, os 200 exemplares e as vendas acumuladas ficam-se, em média, pelos 1000 exemplares. No que respeita à auto-edição, a realidade é ainda mais irrisória: 90% dos títulos vendem menos de 100 exemplares. Mas estes decepcionantes resultados comerciais não demovem autores e editoras de aspirarem a ver os seus livros nas listas de best-sellers, pelo que é previsível que o caudal de edições engrosse substancialmente quando aspirantes a escritores e editoras começarem a usar o ChatGPT e sistemas análogos de inteligência artificial para, sem esforço, gerar (na íntegra ou parcialmente) hordas de romances, contos, ensaios e poesia, na esperança de que alguns deles sejam o bilhete premiado na Grande Lotaria do Mercado Livreiro ou até que Hollywood ou a Netflix adquiram os direitos para adaptação cinematográfica.
O total de títulos produzido ao longo da história tinha sido estimado, pela Google, em 2010, em 130 milhões, numa contabilização que, além de se ter desactualizado nos 13 anos entretanto decorridos, excluiu títulos publicados em formato digital e livros autopublicados. Muitos dos livros publicados em formato físico estão, inevitavelmente, esgotados ou são muito difíceis de obter, mesmo vasculhando livrarias e alfarrabistas (em lojas físicas e online), mas o projecto Google Books pretende rastreá-los a todos, digitalizá-los e torná-los acessíveis da Web. O formato e-book não logrou suplantar num ápice o velho livro em papel, como profetizavam os tecnogurus, mas fez progressos apreciáveis: quando a Amazon lançou o formato digital Kindle, em 2007, oferecia 88.000 títulos, hoje estão disponíveis mais de 12 milhões de títulos.
Ainda ninguém se deu ao trabalho de calcular a quantidade de carbono armazenada em todas as bibliotecas (públicas e particulares) e livrarias do mundo, mas é possível que, se todos os livros do mundo fossem queimados, o acréscimo da concentração de CO2 na atmosfera seria comparável ao resultante da desmatação da bacia amazónica, pelo que, sem o papel desempenhado pelos livros físicos como sinks de carbono, talvez o apocalipse climático profetizado pela rapariga sueca já tivesse chegado – um aspecto que costuma ser olvidado quando se confrontam méritos e deméritos de livros em papel vs. livros electrónicos.
Passemos ao segmento das publicações científicas periódicas: quem aspire a manter-se a par dos mais recentes avanços do conhecimento humano terá de processar anualmente 2,5 milhões de artigos, repartidos por cerca de 30.000 publicações especializadas, que se juntam ao total acumulado (segundo estimativa – certamente desactualizada – de 2009) de 50 milhões de artigos publicados desde 1665, ano em que foi impresso, em Londres, o primeiro número das Philosophical Transactions of the Royal Society, considerada como a mais antiga publicação periódica devotada exclusivamente a assuntos científicos. Apesar de, em princípio, o critério de selecção para publicação de artigos científicos ser mais exigente do que nos livros, uma vez que não existe a figura da autopublicação e cada artigo é submetido à apreciação de especialistas credenciados da mesma área (peer review), na prática, todos os anos acabam por publicar-se muitos artigos científicos inconclusivos, estéreis, inúteis ou até ridículos ou intelectualmente desonestos. O mesmo pode dizer-se das centenas de milhares de teses de licenciatura, mestrado e doutoramento que todos os anos dão entrada nas bibliotecas universitárias, onde a maioria repousará até ao fim dos tempos sem que alguém se digne consultá-las uma vez que seja.
Em contraste com a pujança dos outros meios de comunicação, os jornais – e, em particular, os jornais em papel – têm vindo a sofrer um penoso e inexorável declínio e a migrar para a edição online, mas, ainda assim, a World Association of Newspapers and News Publishers representa actualmente 18.000 títulos, que, em conjunto, imprimem uma média diária de mais de 500 milhões de exemplares.
Estes factos e números atestam que, no alimento para o espírito, tal como no alimento para o corpo, a Humanidade deixou para trás uma longa história de inanição crónica e entrou na Era da Superabundância, com a sua inerente constelação de problemas – os sociólogos, os psicólogos sociais, os antropólogos, os teóricos da comunicação e os analistas de dados cunharam termos como “infobesidade”, “infoxicação”, “ansiedade da informação”, “explosão do conhecimento” e “sobrecarga de informação” para descrever a desorientação, a angústia e o colapso da capacidade de discernimento e de decisão experimentados pelo cérebro humano perante um fluxo de informação que excede largamente a sua capacidade de processamento.
O termo “sobrecarga de informação” foi popularizado pelo livro Future Shock (1970), do cientista social americano Alvin Toffler, que desenvolvia ideias que ventilara, cinco anos antes, no artigo “The Future as a Way of Life” (publicado na revista Horizon), mas o primeiro uso do termo costuma ser atribuído a outro cientista social americano, Bertram Gross, que o terá empregado no livro The Managing of Organizations (1964). Na verdade, um termo afim, “explosão de informação”, já tinha sido empregue em 1955 por Pat Weaver, presidente da cadeia de televisão NBC, num discurso no Institute of Practitioners of Advertising, em Londres: “Creio que nos anos mais recentes estamos a assistir a uma explosão da informação. A cada homem aflui mais informação do que ele é, presentemente, capaz de gerir”. Enquanto Toffler advertia que, “se não forem tomadas medidas inteligentes, milhões de seres humanos poderão sentir-se cada vez mais desorientados e incapazes de lidar racionalmente com este novo ambiente”, Weaver exprimiu a crença de “que ele aprenderá a fazê-lo e que isso será bom para ele”.
Independentemente de discussões bizantinas em torno de primazias de baptismo, é evidente que, em meados do século XX, os espíritos mais lúcidos que geriam ou estudavam os meios de comunicação de massa começavam a intuir que a superabundância de informação, se, por um lado, trazia indiscutíveis vantagens, também poderia criar sérios problemas. O que, retrospectivamente, parece irónico é que os pioneiros que lançaram estes alertas o fizeram baseados nas incipientes tecnologias de computação e comunicação existentes no seu tempo e nenhum deles foi capaz de antever o advento da Internet ou do smartphone e do papel central que estas tecnologias iriam desempenhar na estruturação da sociedade e da economia e no comportamento quotidiano do cidadão comum. É oportuno lembrar que o primeiro computador com memória de disco rígido, o IBM 305 RAMAC, apresentado em 1956 – um ano após Pat Weaver ter empregado a expressão “explosão de informação” – ocupava uma sala com 9 x 15 metros, pesava uma tonelada e era capaz de armazenar 5 MB (megabytes) de dados. Hoje o smartphone típico armazena 64 GB (gigabytes), ou seja, 12 800 vezes a capacidade do IBM 305 RAMAC.
A evolução dos dispositivos de armazenamento de dados associados aos computadores pessoais fornece uma reveladora perspectiva da amplitude das mudanças: a capacidade do disco rígido do PC típico era, em meados da década de 1990, de 1 GB (o prefixo giga (G) corresponde a 109), hoje é de 1-8 TB (o prefixo tera (T) corresponde a 1012). Os dispositivos de armazenamento portáteis passaram por revolução análoga: a disquete de 8 polegadas, lançada comercialmente em 1971, começou por ter uma capacidade de 80 KB; em 1977, esta já tinha sido aumentada para 1,2 MB; foi suplantada, na década de 1980, pelas disquetes de 3 polegadas e meia, que, embora não possuíssem capacidade muito superior – tipicamente 1,44 MB –, eram bem mais pequenas. Após um período de transição em que as funções das disquetes foram asseguradas por CDs e CD-Rs, em 2000 a Trek 2000 International lançou comercialmente a primeira pen drive (ou USB flash drive), com uma capacidade de 8 MB. Dezassete anos depois, a Kingston Technology colocava no mercado uma pen drive com uma capacidade de 2 TB, ou seja, o equivalente a 125.000 pen drives de primeira geração ou a 694 444 disquetes de 3 polegadas e meia, convenientemente empacotados numa lasca de plástico mais pequena que um dedo mindinho e pesando cerca de 30 gramas.
Ao mesmo tempo, a difusão entre a população dos computadores pessoais foi aumentando (numa dupla vertente: cada vez mais pessoas com computadores e cada computador com maior capacidade de memória), fazendo a capacidade global de armazenamento de informação sob forma electrónica passar de 2,6 EB (o prefixo exa (E) corresponde a 1018) em 1986, para 15,7 EB em 1993, 54,5 EB em 2000 e 295 EB em 2007.
Pouco a pouco, fomos familiarizando-nos com o uso de letras gregas até então obscuras para descrever as capacidades de armazenamento e os fluxos da informação digital. 2012 pode ser visto como o ano inaugural da Era do Zettabyte, pois foi o primeiro em que a informação digital armazenada a nível global excedeu um ZB (o prefixo zetta (Z) corresponde a 1021), mas há quem prefira fazer esta Era começar em 2016, o primeiro ano em que o tráfego global da Internet ultrapassou um ZB. Em 2022 – ano 7 da Era do Zettabyte –, este tráfego rondou os 4 ZB. Para tão avassalador aumento do fluxo de dados através da World Wide Web contribuiu o facto de o número de websites ter aumentado de 15.000, em 1992, para 2000 milhões no presente.
Até agora, tratámos apenas de quantidade de informação, não de qualidade. Neste domínio, há uma revelação surpreendente – quiçá chocante – a fazer: a maior parte dos 4 ZB de tráfego da Internet registados em 2022 não disse respeito à Summa Theologica de São Tomás de Aquino, a sonetos de Petrarca, a trios com piano de Schubert, a ensaios sobre a pintura de Artemisia Gentileschi, a tratados de cristalografia ou a guias de identificação de lepidópteros, mas a vídeos com pornografia, gatinhos a tocar piano, gente a desembrulhar robots de cozinha e adolescentes a dançar ao som de “Number One Baby”. Os conteúdos podem variar consoante as vogas, mas há uma tendência inequívoca em termos de formato de comunicação: o vídeo tem vindo a representar uma fracção crescente do tráfego da Internet, passando de 73% do total em 2017, para 82% em 2022.
Sessenta e oito anos após o discurso de Pat Weaver, acumulam-se os indícios de que este foi optimista quanto à resposta humana à sobrecarga de informação: ainda que o fluxo torrencial de informação que caracteriza o século XXI tenha trazido tremendos benefícios – nomeadamente pela democratização do conhecimento –, há muitos indivíduos que não estão a ser capazes de lidar com a sobrecarga e isso não está a ser bom para eles nem para a sociedade.
Em 2010, quando as elites governamentais, empresariais, científicas e intelectuais ainda se extasiavam perante as formidáveis oportunidades abertas pela Internet, pelas redes sociais, pelos smartphones, pelas apps e pelas (recentemente implementadas) redes 4G, surgiram dois livros que quebravam a unanimidade do louvor à Era Digital e alertavam para os efeitos nefastos resultantes da imersão continuada do cérebro humano numa torrente de informação: The Shallows: What the Internet Is Doing to Our Brains (2010, editado em Portugal como Os Superficiais), de Nicholas Carr, e You Are Not a Gadget (2010), de Jaron Lanier. Desde então, têm surgido numerosas obras que escrutinam e analisam o paradoxo central do nosso tempo e que foi formulado (em 1998), de modo lapidar, pelo sociobiólogo Edward O. Wilson: “Estamos a afogar-nos em informação, mas sequiosos de sabedoria”. Entre elas estão The World Beyond Your Head: On Becoming an Individual in an Age of Distraction (2015), de Matthew B. Crawford, Irresistible: The Rise of Addictive Technology and the Business of Keeping us Hooked (2018), de Adam Alter, e Ten Arguments for Deleting Your Social Media Accounts Right Now (2019), de Jaron Lanier.
As advertências vindas destes autores não podem ser descartadas como manifestações de ludismo, neofobia ou nostalgia pelos “bons velhos tempos” – Jaron Lanier, por exemplo, foi pioneiro da realidade virtual, trabalhou para empresas como a Microsoft e a Silicon Graphics e foi eleito pela Wired como uma das 25 pessoas mais influentes na história da tecnologia no último quarto de século – nem como meras “opiniões” ou “feelings”, já que há estudos que comprovam objectivamente os efeitos da sobrecarga informativa: “no ano 2000, a Microsoft Canada estimou o período médio de concentração do ser humano em 12 segundos; em 2013, esse tempo tinha caído para oito segundos” (citado no livro de Adam Alter acima referido).
Na verdade, não seria preciso chegar ao século XXI, nem sequer a meados do século XX, nem ser-se um especialista em teoria da comunicação, para intuir que o cérebro humano tem dificuldade em processar o excesso de informação. Já em 1921, em A Invenção do Dia Claro, José de Almada Negreiros escrevia: “Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria. Deve certamente haver outras maneiras de se salvar uma pessoa, senão estou perdido”. A angústia e a desorientação perante a superabundância de livros têm uma longa tradição entre escritores e pensadores: antes de Almada Negreiros, figuras tão diversas como Edgar Alan Poe, Denis Diderot (por ironia, co-autor do primeiro projecto de compilação de todo o conhecimento, a Encyclopédie) e Martinho Lutero exprimiram a ideia de que a multiplicação descontrolada de livros é algo nefasto, por diluir as obras válidas numa enxurrada de inanidades e tornar cada vez mais difícil distinguir o essencial do acessório.
Já em 1685 o erudito Adrien Baillet (o primeiro biógrafo de Descartes) confessava temer que “a profusão de livros publicados a cada dia que passa fará os séculos vindouros cair num estado de barbárie comparável ao que se seguiu à queda do Império Romano” (vol. I de Jugements des Savants sur les Principaux Ouvrages des Auteurs). Baillet falava com conhecimento de causa, pois trabalhou como bibliotecário para Chrétien-François de Lamoignon, procurador-geral do parlamento francês, cuja biblioteca era tão vasta que Baillet consumiu incontáveis horas a elaborar o respectivo catálogo raisonné, que acabou por ocupar 32 volumes.
Seis anos antes de Baillet, Gottfried Leibniz exprimira receio similar: “Nem as nossas controvérsias nem a nossa acumulação têm fim e raramente chegamos a demonstrar algo ou a inscrever algo num repertório de conhecimento – em resumo, pouco proveito tiramos das nossas demandas. Se assim prosseguirmos, temo que um dano irreparável seja causado e que retornem os tempos de barbárie […] em resultado de a vasta proliferação de objectos e livros arruinar toda a esperança de fruição e soterrar o conhecimento sólido e útil sob uma massa de inanidades” (“Projecto de uma Nova Enciclopédia a ser Redigida Segundo o Método da Invenção”, 1679). Noutra ocasião, discorrendo sobre as ameaças ao progresso do conhecimento, Leibniz confessou que temia menos a tomada do poder por déspotas que abominassem a ciência e tentassem travar o seu progresso, do que a proliferação de livros irresponsáveis e frívolos.
Poderá haver quem tenha a tentação de atribuir parte da culpa desta descontrolada multiplicação de livros a Johannes Gutenberg e à invenção (na Europa) da impressão com caracteres móveis, por volta de 1439, mas a verdade é que, como acontece com tantas revoluções tecnológicas, o tipógrafo alemão não poderia adivinhar as implicações da sua invenção. Como observa Clay Shirky em Cognitive Surplus: Creativity and Generosity in a Connected Age (2010), a intenção de Gutenberg era “tornar economicamente acessível a Bíblia e os escritos de Ptolemeu”; porém, “todo o universo das obras clássicas constituía apenas uma fracção quer da capacidade de impressão quer dos apetites do público”, pelo que as tipografias do século XV começaram a imprimir todo o tipo de livros, panfletos e opúsculos, muitos deles de rasteira qualidade e duvidosa utilidade. Este fenómeno não é, de forma alguma, exclusivo da imprensa de caracteres móveis: desde Gutenberg, têm-se repetido as denúncias de que cada inovação tecnológica que promove a democratização da informação e a rapidez e o alcance da sua difusão acaba, quase sempre, por resultar numa diminuição dos padrões médios de qualidade, uma vez que estes tendem a alinhar-se com os padrões de exigência e os níveis de conhecimento médio cada vez mais baixos das massas cada vez mais vastas a que esses novos meios se dirigem.
O mais inquietante é que o declínio dos padrões de qualidade não se circunscreve às novas tecnologias de comunicação – se estas forem bem aceites na sociedade, acabam por moldar as tecnologias de comunicação preexistentes, como observou o teórico dos media Harold Innis, em 1951, no livro The Bias of Communication: “a rádio acentuou a importância do efémero e do superficial […] As exigências do novo medium foram também impostas aos media precedentes, como o jornal e o livro. Estes poderosos desenvolvimentos causaram a destruição da noção de tempo, fazendo com que se tornasse mais difícil produzir continuidade ou apelar à consideração do futuro”.
À data da publicação de The Bias of Communication, apenas um em cada dez lares americanos possuía televisão, mas esta não tardaria a suplantar, por sua vez, a rádio e a reforçar “a importância do efémero e do superficial” e a impor novo abaixamento nos padrões médios de qualidade, como intuiu o escritor E.B. White logo em 1938, ao assistir a uma demonstração experimental de televisão: “A televisão dilatará imensamente o alcance do olho e, como a rádio, publicitará o Alhures. Juntamente com os tablóides, as revistas e os filmes, insistirá para que esqueçamos o essencial e o próximo em favor do acessório e do remoto” (“Removal”, ensaio publicado originalmente na Harper’s Magazine).
Em defesa de Gutenberg, pode ainda argumentar-se que o problema da sobrecarga de informação antecede em muito o início da operação da impressão com caracteres móveis e não decorre necessariamente de inovações tecnológicas no domínio do armazenamento e transmissão de informação. Já no século I d.C., na segunda das Epistulae Morales ad Lucilium (Cartas a Lucílio ou Cartas de um Estóico), redigidas c.62-65 d.C., Séneca (Lucius Annaeus Seneca) advertia que “ler autores muito variados e livros de todo o tipo tende a tornar-te disperso e inseguro. Deverás cingir-te a um número limitado de mestres e assimilar as suas obras, se buscas ideias que fiquem firmemente retidas no teu espírito. Estar em toda a parte é o mesmo que estar em parte alguma. Quando uma pessoa passa todo o tempo em viagem por terras estrangeiras, acaba por travar muitos conhecimentos, mas não fará amigos”.
As palavras de Séneca poderão parecer deslocadas num tempo em que os livros eram escassíssimos e laboriosamente copiados por escribas em rolos de papiro, carácter a carácter, e se viajava a ritmo pausado, muitas vezes não mais depressa do que um carro de bois, mas assumem plena pertinência na Era do Zettabyte, cujas criaturas se deslocam dentro de casulos metálicos a uma velocidade que reduz o mundo exterior a um borrão; são incessantemente assediadas por estímulos que as arrancam do Aqui e do Agora para as pulverizar pelo Alhures; contabilizam como “amigo” qualquer fantasma digital anónimo e remoto com que partilham “conteúdos”; e bebem, com sofreguidão e deleite, da Cloaca Maxima das redes sociais, crendo piamente tratar-se da pura água de Hipocrene.
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