Fotografia de Robert Harrison por Annie Barnett

O luxo da conversa inteligente

18 de janeiro de 2007 foi uma quinta-feira. Foi um dos primeiros dias que passei na Universidade de Stanford e a data em que vi pela primeira vez Robert Pogue Harrison. Ouvira falar dele na véspera, quando tudo me era novidade. Os outros professores contavam-me que ele estivera internado, com um grave problema de coração – vim a saber mais tarde que estivera em paragem cardíaca, que roçara a morte e se salvara por um triz –, mas que viria naquele dia à Universidade para apresentar uma comunicação. A amizade que lhe votavam levara os mais empedernidos ateus entre os seus colegas a entrar numa igreja e a rezar pela saúde dele. Tudo me foi relatado com uma névoa de misticismo que se adensava com a aura do lugar que me era novo: um campus aberto, solar mesmo no inverno, onde a altura das palmeiras e da torre sineira evocavam elevações do espírito. Naquela quinta-feira de janeiro, sentei-me na fila da frente (tento sentar-me sempre nas filas da frente, com medo de não ouvir ou de não ver alguma coisa) da sala do Terrace Room, no quarto piso do Margaret Jacks Hall e preparei-me para ouvir a abertura do primeiro colóquio de vários a que assistiria ao longo do semestre que ali passei. O título do encontro que reunia especialistas em Estudos Medievais vindos de outras escolas dos Estados Unidos e de paragens europeias como os Países Baixos, a França ou a Alemanha, era “Political Theologies: The Present of the Religious Past” (“Teologias Políticas: O Presente do Passado Religioso”). Ou seja, rapidamente se percebeu que as lições da Idade Média que aquelas pessoas conheciam em profundidade, por serem sobretudo filólogos que se debruçaram anos a fio sobre os textos medievais que chegaram ao nosso tempo, serviam para naquele momento refletir, a partir dos Estados Unidos, sobre a situação política do Ocidente, sobretudo tendo em conta a iminente eleição presidencial em França. (Nicolas Sarkozy seria eleito dali a cerca de quatro meses: os destinos ideológicos, mais do que políticos, da nação francesa interessam aos pensadores norte-americanos pelo menos desde que se engendrou a Revolução Francesa. Uma das figuras mais referidas ao longo dos três dias que durou o colóquio foi Condoleezza Rice, scholar de Stanford e, à altura, a meio do seu mandato como Secretary of State da presidência de George W. Bush.)

Devo ter aguardado uns quinze minutos a olhar para todos os recantos da sala, as pessoas e as paredes, as cadeiras, o púlpito de onde falariam, num absorver de presente com que compenso (ou que me causa?) a posterior falta de memória (as informações concretas que aqui deixo vêm de arquivos, papéis guardados com maior ou menor zelo, e que persistem em reaparecer-me sempre que dou a volta às estantes). A abertura das hostes foi feita com palavras de Stephen J. Nichols e Hans Gumbrecht (o professor que me convidara até ali), que anunciou, feliz, a presença de Harrison: entrou do fundo da sala, striding seria o verbo, em passadas largas, aquele homem alto a afirmar uma cabeleira vivaz e o sorriso de quem regressara à vida depois de, algumas semanas antes, ter sido dado como clinicamente morto. Seria a narrativa da recuperação que, na minha ideia, lhe sugeria o aspecto de um ressuscitado? Já vira fotografias de Robert Harrison de antes da sua hospitalização no final de 2006, voltaria a encontrá-lo na Califórnia em 2014, e, com 68 anos feitos, na conversa que tive com ele por videoconferência no passado dia 27 de março. Parece-me sempre o mesmo: o sorriso aberto, os olhos curiosos, ageless. Um nada decadente ar de estrela do rock’n’roll – e a voz de um dos programas áudio surgidos na vanguarda da era dos podcasts.

Entitled Opinions começou por ser um programa gravado nas instalações da estação de rádio da Universidade de Stanford, KZSU. Estava-se em 2005, Robert Harrison dirigia o Departamento de Literatura Francesa e Italiana em Stanford. “A minha ideia era dupla: por um lado, dar mais visibilidade aos incríveis professores do meu Departamento. Gente como René Girard, Sepp Gumbrecht, Jean-Marie Apostolides, ou Laura Wittman” e, por outro, “tinha aquela vontade de dirigir um programa de rádio que me permitisse conversar com os meus pares, não só colegas do Departamento, mas na esfera mais ampla das Humanidades e até das Ciências.” Então, imaginou aquilo que seria mais do que apenas um programa de rádio, uma página web onde ficassem alojados os registos daquelas conversas, para que qualquer pessoa pudesse aceder a elas e ouvi-las, onde quer que estivesse, quando quisesse. “Lo and behold!”, 2005 foi o ano em que a Apple introduziu software de apoio aos podcasts (antes conhecidos como “audioblogs”) – e, desde o primeiro programa, todos os arquivos do Entitled Opinions foram ali alojados e disponibilizados (“graças a um excelente aluno de licenciatura”). “Julgo que a palavra podcast ainda nem era utilizada,” diz Harrison, lembrando que a BBC arquivava nesse formato o programa In Our Time (iniciado com emissões radiofónicas ainda nos anos 90), e o Entitled Opinions acabou por se achar na mesma companhia. Quando um ouvinte procurava na grande rede do mundo arquivos de conversas sobre conteúdo filosófico nos idos de 2005, encontrava-se com o programa da rádio de Stanford e a voz de Robert Harrison.

Em grande parte das emissões, a abertura dá a ouvir a voz acompanhada por solos de guitarra elétrica – outra das paixões do host, muitas vezes tocada por ele próprio, líder da banda de rock cerebral Glass Wave. Os sons da banda compõem, aliás, o fundo musical em vários momentos das conversas, juntamente com apontamentos do cancioneiro rock norte-americano pós- anos 60. A voz de Harrison (e a sua figura, em certa medida) lembra-me a modulação vocal de um poeta e declamador norte-americano, mais ou menos maldito, mais ou menos assumido enquanto proponente de um determinado modo de pensar: o James Douglas Morrison de An American Prayer (1978). A mesma dicção clara os aproxima, um tom semelhante – e, claro, a vizinhança do rock e da visão filosófica.

O mais recente dos episódios de Entitled Opinions, sobre a “A Ideia da América”, é um monólogo de Robert Harrison ao longo de 25 minutos, que inclui excertos de três temas: “I’m A King Bee”, dos Grateful Dead (1997), “Machine Gun” de Jimi Hendrix (1970) e “Dear Mother Earth” dos Canned Heat (1994). O grupo de Morrison, The Doors, não consta do alinhamento, mas são vários os momentos em que as palavras e o modo de as dizer trazem ecos da jovem alma perturbada e inquisitiva de Jim Morrison, na leitura que gravou entre o final da década de 60 e o dia do seu aniversário, 8 de dezembro de 1970. É apenas o episódio mais recente, mas penso nele como uma moldura que englobe cada um de todos os outros – ou seja, Entitled Opinions oferece uma apreciação de assuntos literários, científicos, tecnológicos, culturais desde um ponto de vista que, mais do que norte-americano, é californiano. As “dores de parto da América,” diz Robert Harrison, “não são apenas políticas, mas também espirituais”. É Emerson, pensador da Costa Leste, que é citado e lido com agudeza neste monólogo – mas a sua reflexão oitocentista acerca de uma ideia de Terra Prometida localiza-se (e Harrison sublinha que o seu monólogo se refere à ideia tanto quanto ao lugar geográfico da América) do lado ocidental, e continua atual enquanto olhar para a identidade norte-americana. Este programa recente propõe as interrogações habituais com o mesmo tipo de atitude aberta e interrogativa que, desde o começo, orientou as conversas: no episódio de novembro de 2005, o entrevistado foi Joshua Landy (numa conversa sobre Marcel Proust), colega de Harrison em Stanford. No começo, o host estabelece como que uma regra também fundacional: “Este programa, meus amigos, declara guerra ao reducionismo e à simplificação. Isso não significa que de vez em quando nós mesmos não possamos cair nesses enganos; mas o objetivo é procurar o saber da incerteza e enquadrarmo-nos na região do improvável.”

Quando chegar o verão, terão passado três anos que ouvi com mais angústia e consolo um dos episódios de Entitled Opinions. Era também um monólogo, sobre as ideias de Tempo, Morte e Cosmos (“On Time, Death, and Cosmos”). A começar, e antes de citar o sempre presente Ralph Waldo Emerson num convite a pensar sobre “onde estamos?” Robert Harrison descreve a situação do mundo, porque os seus ouvintes são de todo o mundo, tão globais como a pandemia (cito no original, pois exibe outra das maravilhas que Entitled Opinions me tem oferecido – palavras novas): “The least we can say is that the year 2020 has found ways to throw us for a loss, to discombulate and unsettle us, and to envelop us in a thick fog of doubt and dread”. É um périplo pela dúvida existencial que se quer fazer em comunhão, mesmo se aqueles que Harrison convida a acompanhar o seu raciocínio sejam indeterminados e uma das interrogações a que convida tome a forma de “Who are we?”. Não é só a emergência de uma pandemia que “discombulates”, que nos baralha e deixa a fazer figuras de tontos: retirado o pavor que em julho de 2020 deixava o mundo sem chão, o pensamento transformado na voz acessível e clara de Robert Harrison e dos seus convidados é como a névoa da dúvida no momento em que entrar nela significa dispormo-nos a ver com maior nitidez os contornos do mundo.


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Fotografias de Robert Harrison por Annie Barnett

O luxo da conversa inteligente

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