Contra Proust

Texto de Robert Pogue Harrison, autor convidado.
Tradução: Ana Isabel Soares

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Como o programa se chama Entitled Opinions, aqui está uma opinião minoritária sobre literatura.

Há 150 anos, no dia 10 de julho, Jeanne Clemence Proust deu à luz um rapaz que haveria de acarinhar e amimar, alimentando nele um feroz egoísmo que se veria forçada a transigir, a negociar e a gerir. Infundiu nele o amor pelas artes e em 1905, quando morreu, deixou-lhe em herança uma fortuna significativa – o que viria a permitir que o filho se tornasse na figura cimeira que hoje conhecemos no mundo literário como Marcel Proust. Todos quantos adoram os sete volumes da sua obra Em Busca do Tempo Perdido têm para com Jeanne Clemence uma forte dívida de gratidão por ter trazido Marcel a este mundo e por ter suportado as impertinentes exigências à sua devoção durante a infância e a juventude, que Marcel tão amorosamente recorda naquele dilatado e irrefreado romance.

Em Busca do Tempo Perdido não é para toda a gente e incluo-me nessa categoria.  Nos meus tempos de universidade, quando transmiti a um dos professores a minha frustração perante os caprichos do livro, ele garantiu-me que eu “viria a gostar de Proust” se passasse com ele tempo suficiente.  Ora, até os professores se enganam e, passadas décadas em que volto uma e outra vez a Proust para lhe dar outra hipótese, sei hoje que jamais envergarei o manto diáfano do romance.  É um requintado tecido, sem dúvida, mas sinto-me estranho, ridículo, quando o visto.  E quanto à prosa, tem aquele sabor esponjoso e meloso de uma madalena, que me é um pouco enjoativo.  Também não me arrebatam as muito elogiadas ruminações de Proust sobre o tempo, a memória e uma elevada ordem de realidade apercebida em instantes de sensações intensificadas.  Cada um com as suas manias, digo eu.

Proust tem vários augustos apreciadores cujas opiniões autorizadas respeito, mas das quais não comungo.  Quando ouço a George Steiner, que tanto admiro, afirmar – como fez numa entrevista – que “Proust expandiu as possibilidades da consciência humana como muito poucos fizeram, Shakespeare e Dante, talvez, mas não muitos mais,” limito-me a abanar a cabeça e a perguntar-me que tipo de feitiço é este, ou que raio me estará a escapar.

Não é que eu não entenda a razão por que algumas pessoas adoram Proust e por que o mundo de Combray as fascina, ou por que as 4000 páginas do romance podem ser viciantes.  Entendo.  Em Busca do Tempo Perdido possui aquela característica típica de qualquer obra de arte literária: é singular.  Não há nada sequer parecido.  Foi escrito à beira do sono.  Desacelera o ritmo do pensamento e da perceção.  Embala-nos com as vagas ondulantes da sua lânguida e líquida prosa.  Tem nos leitores um efeito claramente musical.  A cadência das frases; as melodias recorrentes ou os motivos temáticos; e o modo como os vários volumes representam outros tantos movimentos de uma composição unificada – tudo converge na construção de uma espécie de sinfonia de palavras.  Percebo isso.

Também percebo que o romance abre as portas e convida-nos a entrar no resplandecente mundo da Belle Époque francesa, que, assim como o século XIX, terminou com a Primeira Guerra Mundial.  Mesmo hoje, na nossa realidade histórica completamente alterada, muitos de nós não resistem ao apelo de uma sociedade decadente e fechada em si mesma, habitada por gente rica, artistas e aristocratas.  Assim como pelos criados, claro.  Tem de haver criados.  Acho que li não sei onde que pode vir a haver uma sétima temporada de Downton Abbey.  Minha nossa…

Depois há o Marcel, o narrador-autor, que atravessa as fachadas externas das personagens do romance para chegar ao recôndito das suas mentes, assim como o contemporâneo de Proust, Henry James, faz com as suas personagens.  A diferença entre Proust e James é que James manteve um certo tato e uma certa reserva em relação às suas personagens, deixando-as recolherem-se atrás de véus de discrição.  Uma personagem jamesiana tende a refugiar-se na indeterminação e na reticência.  Uma personagem proustiana tende a ficar exposta, em maior ou menor grau.  O que não é mau.  Não tenho nada contra a indiscrição narrativa.  O meu problema com Proust é que Marcel nos arrasta, aos leitores, agressivamente para dentro dos mais profundos recessos da sua própria idiossincrasia.  Não nos convida, mas arrasta-nos para dentro do seu segredo.  Na psicologia, chama-se a isto “anexação.”  Proust anexa o leitor quando revela os aspectos mais privados do seu próprio ser e, nisso, força o leitor a partilhar a sua intimidade.

Então, sim, entendo o fascinante apelo de Marcel Proust.  Porém, quando o leio sinto-me como o do poema “In-Durance”, de Ezra Pound, que diz: “Tenho saudades da minha gente.”  É um modo circular de dizer: não tenho a mesma sensibilidade de Marcel; não gostaria de passar um serão com nenhuma das duas mil personagens do romance; e de todos os escritores mortos que gostaria de conhecer pessoalmente se pudesse, Proust está quase no último lugar da minha lista, nem que seja porque acho que Samuel Beckett tinha razão quando, no seu cintilante livrinho sobre Proust, escreveu sobre as “duas tendências altamente desenvolvidas em Proust: o seu complexo de dominação e o seu infantilismo” (41).  É uma combinação que posso muito bem dispensar.  Preferia estar sentado no deque do Nellie, a ouvir Marlow tecer as suas histórias, do que à mesa dos Verdurins.

Será Em Busca do Tempo Perdido um romance de que não se pode retirar ou alterar nenhum dos seus componentes sem estragar o todo?  Não tenho a certeza.  Tendo a acreditar que uma simplificação de grandes bocados dele, talvez reduzindo-o a metade, o melhoraria consideravelmente, ou pelo menos o tornaria menos entediante.  Mas talvez o génio do romance de Proust esteja precisamente no seu excesso, no seu transbordar – como Moby Dick ou Finnegan’s Wake – e talvez condensá-lo seja de facto desvirtuá-lo.  Não gostaria de mexer nele, isso é certo.

Apesar da sua extensividade estilística e descritiva, Em Busca do Tempo Perdido continua a ser, do ponto de vista psicológico, um romance claustrofóbico.  Refiro-me não tanto à sociedade confinada dos Swanns, dos Guermantes, etc., mas à emoção do ciúme que assinala o centro de gravidade do romance.

Para Proust e para o narrador, o amor e o ciúme são intermutáveis.  O amor só tem uma modalidade: o desejo compulsivo de possuir totalmente o ser amado – não apenas o corpo do ser amado, mas toda a sua devoção, atenção e desejos mais secretos.  No universo mental de Proust, só o tormento de não atingir essa posse se pode considerar amor.  Marcel declara isso mesmo sob a forma de uma proposição: “Só amamos aquilo que não possuímos totalmente.”  Há tanto no romance de Proust que chafurda nas profundezas lamacentas desta paixão autofágica e heterofágica pela posse.  Vemos como funciona com Swann, com o Baron de Charlus, ou com o próprio Marcel.  Marcel jamais entenderia o sentimento da “Schlaflied” de Rilke, em que o poeta compara a amada com um livro e pergunta: “[…] wirst du schlafen können […] Ohne dass ich dich verschließ / und dich allein mit Deinem lasse?” (“… serás capaz de adormecer / […] sem eu te fechar e só contigo e tuas coisas te deixar […]”[1]).

É Marcel que admite que, em criança, desejava possuir total e exclusivamente a mãe.  Mais tarde, transportou o mesmo desejo vampírico para as suas relações com as mulheres, sobretudo com Albertine.  Assim que crê que possui Albertine, Marcel começa a perder o interesse nela.  Quando volta a suspeitar que algo nela lhe escapa e o exclui, reacende-se a paixão.  O único momento em que está em paz com Albertine é quando ela dorme ao lado dele, como uma suave superfície de presença física, sem segredos nem profundezas ocultas.  Pelo menos é nisso que ele acredita: na realidade, o outro nunca está tão distante ou fora do alcance como quando dorme, tal como Rilke sugere em “Schlaflied”.

Na sua manifestação mais depurada, o ciúme procura a posse através da penetração – não tanto a penetração sexual, mas um conhecimento penetrante do mais profundo do ser amado.  Este olhar de conhecimento interior é sempre negado à pessoa ciumenta, pois ninguém conhece o outro desde dentro, ou seja, ninguém conhece o outro subjetivamente.  É por isso que Marcel faz o maior esforço para descobrir empiricamente onde e com quem e de que modo Albertine passa o tempo quando eles não estão juntos.  Trata-se de uma proposição falível, pois, se os fatores externos nos podem dizer se fomos traídos, jamais nos darão acesso ao pensamento interior da pessoa que nos inspira um desejo patológico de posse total.

Proust foi suficientemente lúcido para entender isso.  Por isso é que Em Busca do Tempo Perdido acaba por sublimar a psicologia do ciúme numa metafísica do desconhecível.  Jamais conseguimos conhecer, ou realmente participar do outro.  Se Proust tivesse ficado por aí, poderia dizer-se que aprendera uma lição preciosa, ainda que muito óbvia. Mas ele foi mais além e meteu-se – e meteu-nos a nós – numa caixa hermética.  Cito-o: “O homem é o ser que não pode sair de si, que só em si conhece os outros e que quando diz o contrário mente.”[2]

A afirmação diz-me tudo aquilo que preciso de saber sobre o porquê de eu jamais “vir a gostar” de Proust, de me sentir sempre abafado pelo seu romance, de eu conseguir viver sem o sublimado solipsismo a que ele chamou a redenção artística da realidade.  Alegra-me afirmar o oposto e deixar aos deuses a tarefa de decidir se estou a mentir: ou seja, afirmar que sou uma pessoa que existe fora de mim mesmo; que saio de mim mesmo dia após dia; e que me conheço a mim mesmo através dos outros, mais do que conheço os outros através de mim.  Em suma, vivo em êxtase.  É por isso que, daqui para diante, não revisitarei o mundo de sombras da obra-prima de Proust.

O meu nome é Robert Harrison, e declaro o fim do nosso longo hiato de um ano e o começo de uma nova temporada de Entitled Opinions.  Temos uns quantos novos episódios preparados para vos mostrar durante as próximas, por isso fiquem atentos e passem a palavra.  Cuidem-se, adeus.

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[1] Tradução de Maria Teresa Furtado (Rainer Maria Rilke, “Canção de Embalar”, in Novos Poemas, ed. Assírio & Alvim, 2023, p. 244).

[2] Tradução de Pedro Tamen (Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido – A Fugitiva, ed. Círculo de Leitores, 2004, p. 38).

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Sobre o autor:

Robert Harrison nasceu em 1954 em Esmirna, na Turquia, e doutorou-se em 1984 na Universidade de Cornell, com uma tese sobre a obra Vita Nuova, de Dante. É Professor (sobretudo, mas não só) de Literatura Italiana na Universidade de Stanford desde 1986, onde ocupa a Cátedra Rosina Pierotti. A República Francesa condecorou-o Cavaleiro da Legião de Honra em 2014. É membro da Academia Norte-Americana das Artes & das Ciências, e o guitarrista principal da banda de “rock cerebral” Glass Wave, de que foi fundador.

Além de inúmeros artigos publicados em periódicos como The New York Review of Books, fez sair vários livros: o primeiro (1988) tem por título The Body of Beatrice e trata de poesia lírica da Idade Média em Itália. Forests: The Shadow of Civilization, surgiu em 1993 e centra-se nos processos de simbologia, representação e conceptualização das florestas na literatura, na mitologia e na religião ocidentais. Em 2003 publicou The Dominion of the Dead, no qual se debruça sobre as relações entre os vivos e os seus mortos, e em 2008 Gardens: An Essay on the Human ConditionJuvenescence: A Cultural History of Our Age (2014) é a sua mais recente publicação. É responsável, desde 2005, por Entitled Opinions, um programa radiofónico / podcast na rádio KZSU, para cujos episódios convida especialistas com quem conversa sobre artes, literatura, ciências, tecnologia, ou religião.

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