Besta de carga é o que mais ouço. Nota-se nesta curvatura do corpo, agora que me vejo caminhando descompassado e um tanto incerto. Já quase me esquecera do tempo ruim que trago inscrito em quase tudo que ainda penso; por isso estas costelas salientes, o pêlo que perdeu o brilho e a cabeça quase sempre baixa. Enfim. De pouco valem lamentações que ninguém ouve e o mundo muda mais rapidamente que o rodopio diário do planeta.
Nunca pensara um dia andar nesta vida airada que agora vou tendo sem trabalho nem consumições…, erva fresca, sombra, um pouco de solidão, espírito contemplativo e ruminação lenta nestas terras que ainda há pouco eram floresta, antes que o corte da madeira e o fogo tudo queimassem para pasto de manadas de gado posto a engordar, cortado às postas e despachado para a China.
É enganadora a paz que se respira no caminho para o salão de festas do condomínio. Aquilo que são estes caminhos e ruas impecáveis, as mansões espaçadas pela encosta da colina, termina em altos muros com arame farpado e na grande entrada onde os homens armados inspeccionam quem entra e quem sai. Lá fora é o grande mundo, o salve-se quem puder.
Tudo o que o brilho e a voragem do minério conseguem atrair transformou as vastidões da floresta e das fazendas de gado em lugares de gente que se aglomera em constelações urbanas sem fim, espalhadas ao longo das bordas de estradas, das margens de rios, dos novos arruamentos de terra batida junto a velhos assentamentos rurais e vilas esquecidas. O apelo da mina é o motor da urbanização rápida, mesmo quando, algures numa bolsa de valores, a cotação do minério desce e o trabalho da mina abranda. Nos lugares longínquos onde há muito pouco tempo se vivia na modorra dos dias lentos, instalou-se a aceleração do caos comandada pela voracidade da economia-mundo que tudo mobiliza e arrasta na sua correnteza – mais ferro, mais cobre, mais carne, mais capital, mais lucro, mais.
Com a gente, vem tudo aquilo que a vida reclama para quem pode e quem não pode, listas infinitas de coisas, comércios, trocas, utilidades e desejos como na Leitura em Diagonal das Páginas Amarelas, poema de Drummond de Andrade e voz de Adriana Calcanhotto em modo bossa nova, batida electrónica e a cadência marcada e desencantada das palavras ditas,
I Máquinas de lavar Máquinas de lixar Máquinas de furar Máquinas de curvar Máquinas de dobrar Máquinas de engarrafar Máquinas de empacotar Máquinas de ensacar Máquinas de assar Máquinas de faturamento
II Champanha por atacado Artigos orientais Institutos de beleza Metais preciosos Peleterias Salões para banquetes e festas Condimentos e molhos Botões a varejo Roupas de aluguel Tântalo
III Panelas de pressão Rolos compressores Sistemas de segurança Vigilância noturna Vigilância industrial Interruptores de circuito Iscas Encanadores Alambrados Supressão de ruídos
IV Doenças da pele Doenças do sangue Doenças do sexo Doenças vasculares Doenças das senhoras Doenças tropicais Câncer Doenças da velhice Empresas funerárias Coletores de resíduos
V Papéis transparentes Vidro fosco Gelatina copiativa Cursinhos Amortecedores Resfriamento de ar Retificadores elétricos Tesouras mecânicas Ar comprimido Cupim
VI Mourões para cerca Mudanças de pianos Relógios de igreja Borboletas de passagem Cata-ventos Cintas abdominais Produtos de porco Peles cruas Peixes ornamentais Decalcomania
VII Peritos em exame de documentos Peritos em imposto de renda Preparação de papéis de casamento Representantes de papel e papelão Detetives particulares Tira-manchas Limpa-fossas Fogos de artifício Sucos especiais Ioga
VIII Anéis de carvão Anéis de formatura Purpurina Cogumelos Extinção de pêlos Presentes por atacado Lantejoulas Sereias Souvenirs Soda cáustica
IX Retificação de eixos Varreduras mecânicas Expurgo de ambientes Revólver para pintura Pintores a pistola Cimento armado Guinchos Intérpretes Refugos Sebo.
Veio o grande incêndio da mata, a Transamazónica, as hidroeléctricas, a ferrovia, as telecomunicações, aeroportos, centros logísticos, camiões gigantes, máquinas de conectar o mundo com a selva, de conduzir rios de dinheiro, de cortar madeira, esventrar o chão, catar ouro e gemas, ocupar a terra, produzir carne ou soja, solo urbano, construção e muito minério. Vieram todos, sem terra e sem nada, vagabundos, militares, capitalistas, bandidos, gente escorraçada, miragens, oligarcas, posseiros, empresários, fazendeiros, migrantes. Tudo isto o índio viu, viu a terra ocupada, viu o seu lugar no mundo entre o legado intemporal dos ancestrais e a terra sem lugar nenhum, invadida.
No coração do grande ruído, nada perturba a paz do condomínio com vistas para o vale, o rio serpenteando ao longe, um céu que não tem fim, nuvens gigantescas, sol e tantas estrelas na noite como uma eternidade contando-as.
Sou o burro do condomínio do enclave fortificado; o animal doméstico deste mundo à parte vizinho de outros mundos bem diferentes e ameaçadores. Faço parte da natureza doméstica, da grande mansão, de relva aparada, da piscina pendurada no abismo para o azul cloro colar com o do céu, da portaria vigiada por seguranças armados, por olhos electrónicos, arame farpado, muros. Tudo é novo, impecável, exércitos de funcionárias, motoristas, jardineiros, babás, empregadas, diaristas, serviçais, ruas lavadas.
A febre do metal multiplicou-se, desde o gigantismo e a alta tecnologia a desmontar montanhas para embarcar para o oriente, até ao garimpo ilegal por toda a parte. Como sempre, o pobre instala-se onde pode e o rico, onde escolhe. O condomínio residencial de luxo é o avesso da invasão e da casa de tijolo escassa e inacabada. O que para uns é distanciamento e exclusão é, na mesma geografia periférica, distinção. Assim é desde o início do mundo. A privatopia segmenta a vida pública nas ilhas da urbanização em arquipélago, na organização das novas tribos nos seus espaços exclusivos, nas comunidades fechadas onde se exibem luxos, estilos de vida, marcas. De vez em quando, na grande piscina, na academia e na sala de festas do condomínio, juntam-se os iguais para celebrar distinções e marcar distâncias ou aproximações. Lá fora é outro dia.
Nem arara tem sossego, ou onça pintada ou urubu já convertido ao ofício de catar lixo. Houve trinta mil garimpeiros na Serra Pelada, coronéis, engenheiros, aventureiros, desgraçados sem nada à procura de ocasião, vendedores de tudo, do corpo, do arroz com feijão, dos materiais para os barracos, das obras, ferro e aço, dos bares e lanchonetes, dos carros, das motos, muitos traficantes da fé e da salvação, de roupas e sapatos, ferramentas, coisas para as casas, fruta, máquinas, farmácias, restaurantes, confeitarias, festas, presentes, ópticas, açougue, gelo, madeira, móveis, electrónica, confecções, tintas, sex shop, clínicas, dentista, Revólver para pintura Pintores a pistola Cimento armado Guinchos Intérpretes Refugos Sebo.