Fotograma do filme Paterson, de Jim Jarmusch

Simpatia Inacabada #8

FUGIR AO ASSUNTO

Quantos textos haverá no mundo com personagens que têm caderninhos pretos? Num destes dias, ouvindo por acaso uma canção de Nick Cave sobre uma rapariga chamada Bee, lembrei-me de um exercício que entreguei no primeiro ano da faculdade, quando a professora de Inglês pediu aos alunos um texto inspirado por um adágio popular.

Entre a lista de adágios propostos, escolhi o pouco empolgante “Variety is the spice of life” (“a diversidade é o sal da vida”?). Depois escrevi uma história qualquer sobre um rapaz que, no fim, arrancava as folhas de um caderno preto para as atirar ao vento do cimo de um penhasco. No parágrafo final, recordando subitamente o mote da tarefa a cumprir, acrescentei à pressa qualquer coisa como: “Algumas pessoas achá-lo-iam demasiado imprevisível, excêntrico, ou diferente dos outros, mas ‘variety is the spice of life’.”

Com razão, a professora acusou-me de ter “fugido ao assunto”, comentário que inaugurou uma longa série de recriminações, ouvidas ao longo dos anos em conversas com diferentes professores, que faziam questão de me explicar que não tinha respondido à pergunta.

Como negar a vontade que há em mim de “fugir ao assunto” se, no próprio momento em que escrevo esta frase, já estou a pensar noutra coisa? Será que estes professores não sabiam que perguntar não implica obter uma resposta? Todas as perguntas podem ser feitas, mas há algumas que, se quisermos mesmo fazê-las, temos de estar preparados para reagir com graciosidade se o interlocutor não quiser responder.

Infelizmente, aos professores, não podia contrapor que achara as perguntas desinteressantes e que tinha palavras muito mais cativantes a dizer – sobre outros temas. Agora tenho a certeza de que muitas vezes escrevemos as frases mais verdadeiras quando nos distraímos do assunto. No último momento, no entanto, recordando a tarefa proposta, recuperamos o discurso pretendido, para satisfazer os objectivos – e escrevemos as coisas do costume. Neste caso, é verdade que as conclusões são de máxima utilidade, na medida em que nos permitem alegar que nunca deixámos de ter o assunto em mente – quando, na verdade, nunca nos interessou minimamente.

Talvez o segredo para sermos felizes na expressão seja escaparmos o mais possível aos temas propostos. Mesmo na vida real, nem todas as perguntas que parecem importantes são. Há interlocutores que nos propõem perguntas importantíssimas para eles, mas irrelevantes para nós. Às vezes, dão motes que não temos tempo, nem paciência, para glosar. Na maior parte dos casos, preferimos falar de outra coisa. Portanto, tergiversamos um pouco. Fazemos um olhar vago e distraído. Respondemos ao lado. Fingimos que não compreendemos – mesmo quando as pessoas repetem a pergunta, tentando esclarecer-nos caridosamente.

Em situações mais adequadas a conversas de ocasião, há quem, talvez imaginando uma resposta de cruzinha, faça perguntas que exigiriam reacções aprofundadas. Para estes casos, convém termos sempre algumas respostas preparadas. De acordo com a minha experiência, as melhores são as que, pela formulação absurdista ou chocante, deixam os interlocutores perplexos e embasbacados, sem capacidade para repetirem por outras palavras a pergunta evitável.

Outras vezes, a pergunta é uma boa pergunta, mas não podemos responder. Há perguntas a que só responderíamos quando feitas por pouquíssimas pessoas – uma ou duas, no máximo –, pessoas que, curiosamente, nunca fazem essas perguntas, talvez por já saberem como seria a resposta. Nestas circunstâncias, o paradoxo do acto de perguntar torna-se bem evidente: quem precisa de perguntar não deve fazê-lo.

Pela minha parte, há muitas coisas que não pergunto. Os outros podem achar que é por desinteresse, mas é precisamente o contrário. Prestei-lhes atenção suficiente para não precisar de os questionar. De vez em quando interrogo-me sobre as palavras que usaria, se precisasse impreterivelmente de perguntar alguma coisa, mas imagino perguntas com uma ou duas palavras, ou para as quais um olhar bastaria.

Muito raras são as perguntas verdadeiramente interessantes, mas em que nunca tínhamos pensado. Sobre estas, porém, podemos não querer pensar naquele momento. Preferimos deixá-las para mais tarde. Precisamos de mais tempo.

Qual será, na verdade, o valor das perguntas? Nos exames e exercícios escolares, claro, são instrumentos de avaliação. Nas conversas, mantêm as pessoas a falar. Muitas perguntas servem apenas para extorquir as respostas falsas que asseguram o regular funcionamento do mundo. Na maior parte das vezes, as palavras não são articuladas para transmitir informação, mas sim para a obscurecer. Felizmente, enquanto fogem à pergunta, os interlocutores podem explorar ou compreender alguma questão essencial, mas sobre a qual nunca ninguém perguntou nada.

E há as perguntas que fazemos a nós mesmos. Mesmo a essas, nem sempre queremos responder. Isso não implica necessariamente fugirmos aos assuntos da nossa vida. Simplesmente, há assuntos em relação aos quais suspeitamos que fugir foi a opção mais inteligente. Nesta fuga, não há nada a temer: aos assuntos mais importantes de todos não conseguimos fugir. Aqueles a que conseguimos fugir não são os mais importantes.

Não quero fugir ao caderninho preto da personagem de Nick Cave, embora já quase tenha conseguido perder um caderno praticamente imperdível. Só percebi que não o tinha quando me perguntaram por email: “Por acaso perdeu um caderninho verde com citações?” Não era um caderninho que tivesse o desejo de partir, de desaparecer, de se perder. É possível que, sem dar por isso, me tenha esquecido dele dentro de um livro que estava a rever. Foi-se embora dentro do livro revisto. Depois, contudo, acabou por voltar, com as páginas ainda preenchidas.

Essa rapariga da canção de Nick Cave intriga-me realmente. É uma pessoa com historial, mas sem passado. Por ter historial, não tem passado. Ao contrário da história, o historial inclui uma série de acontecimentos perigosos que desarticulam a narrativa e põem a vida em risco. É composto por coisas impossíveis de narrar – as que arrancam as folhas dos cadernos e baralham a cronologia. Nenhuma história é mais interessante do que essa espécie de música sussurrada que captamos no tumulto das páginas, quando as arrancamos dos cadernos.

Também no filme Paterson, de Jim Jarmusch, o protagonista se esquece de um caderno, deixando-o ao alcance de um cão vingativo. O cão destrói o caderno. Não há cópia dos textos; perdem-se para sempre. Paterson fica totalmente desorientado, sem perceber bem quem é. Antes do fim do filme, contudo, uma personagem misteriosa oferece-lhe novo caderno, com as páginas em branco (e encadernação japonesa?). Se há perguntas, estão por formular. Se há coisas a escrever, terão de ser escritas. Não é um caderninho preto.

Simpatia Inacabada #8
Natureza-Morta com Livro, de Richard Diebenkorn, 1958

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