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O Casal Pragmático

Uma relação obrigatória, a prazo mas definitiva, uma das partes tinha dupla personalidade, a outra tinha milhares. Durou anos e ainda hoje não se sabe se tiveram filhos. Há um viúvo alegre e um morto contrariado. Dito assim talvez o leitor tenha dificuldade em imaginar que relação foi esta. Se acrescentar mais uns detalhes talvez seja mais fácil. Estávamos no dito período revolucionário. A concordata ( isto de casalinhos devia sempre aos padres no antigamente) ainda não fora redigida, o povo estava na rua. O mesmo povo que durante quarenta e oito anos nada fez para deitar abaixo uma ditadura bolorenta. Os únicos que trabalhavam a sério eram os comunistas, mas em quarenta e oito anos nunca conseguiram o levantamento de massas. As condições objectivas eram arredias e caprichosas. Existiam histórias individuais de resistência e pouco mais. O resto todos sabemos. Um grupo de oficiais, muitos foram discípulos do general de monóculo na Guiné, planearam e executaram o derrube do regime. Então sim, o povo saiu à rua mas a revolução tinha de ser feita. E foi assim que a relação começou, entre copos e ajustes de contas como todos os bons casamentos. Uma das partes quis o governo da casa. Tinha de ser. Os convidados da boda tinham desarrumado tudo. Havia uns tios antiquados e vingativos, emborrachados, queriam compensações sobre uns terrenos. Também por lá azougavam uns amigos do alheio para os quais tudo era de todos conquanto fossem eles a decidir quem era tudo e quem era todos. Enfim, decisões tinham de ser tomadas. A outra parte aceitou, tinha muita coisa para fazer. Más memórias, nervoseira com um casamento inesperado, enfim, o habitual num noivo jovem e impreparado. Agora já mais é fácil identificar as partes desta relação. Uma era o Conselho da Revolução (CR), a outra essa entidade escorregadia chamada povo português. O CR é criado a 14 de Março ( de 75) como o filho crescido da Junta de Salvação Nacional e o primo institucional da Assembleia do MFA. Um jovem oficial da Marinha, pouco falado hoje, Martins Guerreiro, definiu o conceito inicial. Ainda não havia Constituição porque nem se tinham realizado as primeiras eleições. Depois lá se fez a festa da democracia mas a sangria caiu mal a alguns. O CR era feixe de muitas varas, um marido vigilante dado ao tal desdobramento de personalidades. O outro noivo, o povo, brincava alegre com os amigos e pelo meio lá aderiu a um clube chefiado pelo Mário Bochechas. O caldo começou a entornar. Aparece um papelucho saído de uma arca encoirada, o Guia da Aliança Povo-MFA que previa a anulação da Constituinte e a abolição dos partidos políticos. No meio do casalinho mete-se muita gente. Uns ganapos assaltam a embaixada de Espanha à vista folgada dos pais que nada fazem, os tais tios lapardões do norte brincam com o fogo e queimam pessoas; enfim, a cizânia envolve os noivos. Depois de uma confusa sarrafusca num quente Novembro, o marido vigilante muda de direcção mas mantém a mão firme no povo-noivo que, aos poucos, aceitando e refilando lá se ajusta. «Democracia tutelada» diz a Maria Inácia Rezola que tem apontamentos muito bons dessas aulas, fermento e revolução pregava o primo Melo Antunes. A relação acabou uns anos depois entre ranger de dentes. Diz-se que há descendência misteriosa e em parte incerta. O marido vigilante foi enterrado sem pompa nem circunstância. O noivo-povo lá seguiu o seu caminho, meio atoleimado, hoje ri-se muito e folga sempre que pode (o que não acontece muitas vezes). Moral da história como diziam os nossos avós? Manda e descuida, não se fará coisa nenhuma.

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