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O Mistério

Ao fim de trinta anos desta vida (psicólogo, terapeuta, demiurgo, bruxo, lançador de búzios) ainda me espanto. Como é que as relações sobrevivem? Sabemos por que começam: obrigação, necessidade, tempo livre, casas pequenas. Como raio se prolongam? Não faço caso das terapias conjugais salvo para evitar assassínios ou fogo posto. O conceito de tratar casais, portanto casamentos ou relações, é exótico. Lembro-me sempre das pessoas que querem um cão e depois vão para uma escola canina. Difícil distinguir qual é o animal que pensa. A comunicação no casal é um dos temas preferidos das terapias conjugais. É refrescante imaginar um casal na cama a tentar aplicar as técnicas aprendidas na terapia conjugal: é o ménage ubíquo. Já na política de comunicação do casal às vezes meto a colher. Não necessita do esforço psicotécnico, pode ser avaliada apenas com um dos elementos. Por exemplo: Se ele não lhe passa cartão, por que não arranja outro? Ou: Se ela engordou, por que não desenvolve um fétiche com gordas? Ou como disse Paulo aos Coríntios ( 2 Co 3.6): a letra mata, o espírito dá vida. As de amizade, as fraternais, as entre pais e filhos também não escapam ao mistério. O tempo, esse grande escultor: foi o infeliz contributo da Yourcenar. Só se for um escultor demenciado e com insuficiência renal. Se o tempo faz alguma coisa que se veja é roubar:  é a única coisa que é nossa, uma velha regra da escola do Arco, mas é um ladrão: o nosso ladrão. Peguemos de cernelha as relações pais-filhos, as boas porque as outras nem saem dos curros. Tudo é bonito no início. O colinho, as histórias antes de dormir, as folgazas. Depois a criança cresce e o pai envelhece. Rima e é verdade. A relação sobrevive apenas pela designação institucional e pelas memórias. Já é outra coisa qualquer. Com sorte, civilizada e distante. As fraternais têm uma ecologia comum com as anteriores: a família, essa coisa com penas. Agora é raro um miúdo que tenha mais de um irmão, por isso a mutala tem de ser montada numa acácia com vista para as gerações mais velhas. A família implica que mesmo sem se falarem durante anos o laçarote permanece. Ninguém diz «ai era um gajo e tal que foi meu irmão quando andávamos na faculdade». O que é interessante é a sobrevivência dessas relações: passam a encontrar-se em casamentos e funerais e cumprimentam-se como antigos vizinhos. E são. As de amizade são mais enguias. Diferem dos casalinhos porque não há contrato ou descendência e ao contrário das familiares não existe genética nem economia mais ou menos comum. Sim, tenho sempre presente a brincadeira do chato do Aristóteles – Ó meus amigos, não há nenhum amigo – mas não gosto muito de pensar nela. As relações de amizade sofrem do critério objectivo: tanto chamamos amigo a uma pessoa que conhecemos há um par de anos como a alguém de quem nos lembramos desde as primeiras borbulhas. Costumo usar uma regra ainda mais doidivana do que a brincadeira do estagirita: a um amigo telefonamos, desesperados, às quatro da manhã e pedimos que venha a nossa casa. Os amigos vêm primeiro e só depois nos dão na cabeça; os outros combinam um café para o dia seguinte: vamos conversar, pá.

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