O grito – primeiro andamento – moderato
A actriz começa subitamente a gritar. É um longo grito. Não é de raiva nem de pânico, é apenas prolongado. Até que se esgote o ar. No fim, inspira longamente e recomeça. A meio do segundo grito, quando parece adivinhar-se já que os nossos ouvidos vão sofrer este tormento por mais algum tempo, a actriz pára. Começa a fazer um novo origami enquanto narra a história.
– Esta era a minha avó. Foi assim do nada, começou a gritar. Gritou, gritou e continuou a gritar.
– Ó mãezinha, o que é que tem?
Novo grito
– Mas a minha avó não respondia, apenas parecia esvaziar a alma naquele grito. Ninguém saberia dizer que grito era aquele. Uma coisa pareceu-me evidente: não era mal de corpo. Quem no corpo tem maleitas não é assim que grita.
E todos relembraram outros gritos da família.
– Quando o Tuca partiu, a perna também gritou muito.
– Mas não foi assim – contestou o Tio Basílio, conhecido por ter sempre pontos a acrescentar a cada conto e estar sempre disposto a uma longa contenda de palavras e factos.
– Mas também gritou muito tempo.
– Coisas há em que o tempo não é determinante. Nem é factor valorativo!
– E a tia com dores de dentes? A tia com dores de dentes também gritava assim.
– Ela estava com algum martelo na mão? O avô quando gritou, assim parecido, foi porque deu uma martelada no dedo.
A Deolinda tinha chegado a correr da cozinha.
– Que martelada que nada, pois não se vê logo que isto é coisa mais profunda, mais de dentro.
– E a tia do primo Carlos quando lhe morreu a filha?
Subitamente parecia que naquela família se gritava muito, e que todos, e cada um, em dado momento das suas vidas já tinham soltado um longo e lancinante grito, igual em intensidade e mistérios aos gritos da minha avó.
– A Teresa, quando o Carlos lhe partiu aquele pechiché da boneca, também gritou assim.
– Não foi não senhora – tive de me defender – Foi o choro normal. Eu só tinha cinco anos.
O tio Basílio com espírito prático atalhou a questão:
– Não é relevante como grita a avó e como gritaram outros. O que se impõe é parar isto. São quase horas de dormir e se a gritaria não cessa nesta casa, ninguém prega olho nesta noite.
O Tio Basílio tem as suas coisas, umas melhores, outras piores, mas uma coisa tem de bom, é prático.
Mais um longo grito
Mas a avó não se intimidou com a exibição de lucidez eficiente do tio Basílio, parecia apenas determinada em gritar e continuar a gritar. Quando as pessoas gritam, esperamos ler-lhes na cara a metade explicativa da metade que se ouve. Porque os gritos são assim, vêm em duas partes. A que se ouve e a que se vê. Quando conhecemos bem o gritador, nem necessitamos de olhar para ele para ver a metade do grito que é visual.
– Teresa. Teresa.
Para mim, era evidente. O primeiro grito da minha mãe era porque tinha deixado a banheira toda desarrumada após o banho. Já o segundo era mais grave. Tinha-lhe ido outra vez ao perfume. Não sei como é que ela sempre descobria. Eram só umas gotas. Eu voltava a colocar o frasco na mesma.
Novo grito longo
Estou a perder-me, e não posso. A questão é urgente, temos uma avó que grita e ninguém sabe porquê.
A metade visível do grito não era de dor. Nem de raiva. Era estranho como um grito tão perturbador e intenso podia nascer de uma boca escancarada numa face tão neutra. Era um gritar que parecia natural, como se o normal fosse gritar e todos nós tivéssemos esquecido isso.
Grito curto
Depois, subitamente, tal como tinham começado, os gritos pararam. E como se nada se tivesse passado, a minha avó levantou-se da sua cadeira e recolheu ao quarto. Sem olhar para nós que a seguíamos com os olhos.
– Problema resolvido. Hoje dorme-se nesta casa!
Convenhamos que há momentos de ser prático e há momentos de ser um pouco mais atencioso.
– Basílio! Como é que consegues ser tão insensível?! A mãe não está bem.
– Não estava quando gritava, mas agora pareceu-me perfeitamente normal.
– Basílio!
– Não há casos na família.
O tio Basílio tinha o hábito de saltar argumentos e ir directo a factos que apenas ele percebia. Para ele, as coisas encadeavam-se numa lógica óbvia que não nos perdoava não entendermos.
– Pelo menos do nosso lado – acrescentou enigmático com um olhar pesaroso em direcção a mim e ao meu irmão.
O meu pai é calado, sempre foi calado. Apenas se levantou, boa noite e saiu.
O tio insistiu.
– Foi episódio sem vez. Episódio isolado. Eu vou dormir também. Amanhã o assunto já está esquecido.
Ficou um silêncio incomodado. A minha mãe teve de aplacar o meu olhar e o olhar do meu irmão.
– A vossa avó… a mãe do vosso pai.
A actriz acabou de fazer um novo origami
(intercala com outro texto qualquer)
O Grito – segundo andamento – allegro
Há histórias assim: que se impõem à história que se quer contar. A minha avó materna a gritar sem parar e eu só conseguia pensar na minha avó paterna.
A memória dela era agora como um cutelo a pairar por cima da minha cabeça e do meu irmão. Já os gritos da minha outra avó mais pareciam a enxerga onde eu e o meu irmão aguardávamos a sentença.
No fim do pequeno-almoço, os gritos já quase faziam parte da família.
Grito intermitente
– Chegas-me o açúcar?
– Despacha-te, Tuca!
–- Deolinda, traz mais café.
Grito acaba em fade out
Quando todos saíram, a casa ficou silenciosa. Ficamos apenas eu, a Deolinda… (grito curto) e a minha avó gritadora.
A família é o espaço vazio que fica entre cada um dos seus membros, e na minha família esse espaço invisível chama-se Deolinda. Não sendo da família, ela é a família. É o seu motor secreto, a sua memória, a sua reserva moral.
Ela é como uma biblioteca, tem uma área pública e uma área reservada a estudiosos, onde só se entra com aprovação superior. Mas eu sabia a palavra-passe.
– Deolinda, precisas de ajuda?
– Mal de amor não é loucura.
Se o tio Basílio seguia os seus tortuosos caminhos mentais para nos levar onde queria, já a Deolinda atalhava pelos nossos labirintos e chegava rapidamente aos nossos destinos. Eu acho que era por nos ver comer que ela nos conhecia tão bem. Quando se põe uma travessa à frente de uma família esfomeada, é como observar uma alcateia de lobos a partilhar uma carcaça, todas as dinâmicas e todas as particularidades estão espelhadas nesse momento. Estando no limite, na fronteira da família, ela estava suficientemente dentro para ver de perto e suficientemente longe para ver de fora.
– Mal de amor não é loucura. A tua avó paterna apaixonou-se por um homem que não era o marido. Era madrinha de guerra de um primo afastado. Das cartas trocadas entre a metrópole e a colónia em guerra nasceu o amor. E ela foi doida o suficiente para ir atrás dele e deixar tudo para trás.
Grito
A minha avó que não enlouqueceu de amor continuava a gritar. E agora já me podia focar nela.
O cutelo de um amor louco suspenso por cima da minha cabeça não me incomodava. Nada. Que seja executada já aqui a sentença.
(intercala com outro texto qualquer)
O Jogo do Cintinho
Esta contou-me o meu pai. Num dos raros momentos em que assomou por trás da sua silenciosa melancolia.
Quando ele era pequeno, ele e os outros meninos jogavam na primária o jogo do cintinho. O jogo era simples: primeiro os meninos juntavam-se todos num espaço isolado de onde não se via o recreio, regra geral debaixo de um pequeno telheiro que lá havia. Um deles ia para o pátio da escola e escondia o cinto. Depois, afastava-se do sítio onde o tinha ocultado, e gritava para os outros:
– Podem vir!
Então, os meninos corriam loucos ocupando todo o recreio na ânsia de serem os primeiros a descobrir o tesouro escondido. Quem o descobria fazia uma festa. Uns gritavam de alegria:
– Encontrei, encontrei!
Outros começavam a rir e outros – matreiros – escondiam a sua descoberta aguardando o melhor momento para a revelar.
Pela primeira vez, vi no meu pai o brilho de um sorriso. É certo que era um sorriso também ele melancólico, mas definitivamente um sorriso. Depois, o momento passou e o sorriso do meu pai quase se evaporou nas suas memórias.
Dizia a regra do jogo que quem encontrava o cintinho usava-o para bater em todos os outros até que eles conseguissem regressar ao santuário do telheiro onde a brincadeira tinha começado. Alguns seguravam o cinto pela fivela e agrediam os outros com a extremidade mole. Os cruéis pegavam no cinto por esse lado, batendo com a fivela de metal nos amigos que tentavam refugiar-se debaixo do telheiro. Depois, era a vez de o agressor esconder o cinto, e a brincadeira recomeçava.
Os realmente cruéis escondiam o cinto muito bem escondido, mas mesmo junto do telheiro. Quando o cinto era descoberto pelo novo agressor, este ficava entre as vítimas e o refúgio e, para divertimento do que tinha escondido o cinto, apenas tinha de esperar que os outros tentassem passar por ele. E ninguém queria ser o último a chegar. Não só pela vergonha mas também porque isolados somos mais fracos. E o último a chegar era quase sempre o mais castigado.
Agora pode parecer um jogo cruel e apenas violento e mau, mas iam aprendendo. Como eram os outros e como eram amplificados pelo poder de possuir o cinto e como eram os próprios quando vulneráveis ao cinto. Mas principalmente aprendiam aquilo em que se tornavam quando tinham o cinto na mão. E brincar é experimentar a vida, ganhar capacidades de a enfrentar. Não era apenas um cruel jogo, violento e mau.
Um dia, o último a chegar foi o meu pai, e nesse dia o castigador era o seu melhor amigo. Ele não me contou o resto.
Não sei se foi a fuga da minha avó apaixonada para África ou se foi o que aconteceu nesse dia que tornou o meu pai calado e taciturno. Poderá ter sido qualquer uma dessas duas coisas. O pior poderá ter sido o que o meu pai aprendeu sobre si próprio no dia em que foi ele o que encontrou o cinto,
(intercala com outro texto qualquer)
O Grito – Terceiro e último andamento – Subito
Grito prolongado
– Afinal, que se passa, Dona Sílvia?
A minha avó parou de gritar. Fora a pergunta feita por mim ou pela minha mãe e nada se teria passado.
Mas o tradicional silêncio, quase ausente, do meu pai ampliou a urgência da pergunta e tornou a frase realmente sincera.
Vivemos rodeados de ruído. De ruídos que apenas ampliam o silêncio. Pior do que tentar ver a floresta apesar das árvores que a tapam e pior que tentar ver as árvores apesar da floresta, é tentar ouvir num meio com demasiado ruído.
Se eu tivesse uma caçadeira, não me escapava nenhum altifalante de elevador, em nenhum café haveria música, e em praia alguma seria permitido conspurcar o ruído das ondas com um solfejo. As buzinas dos automóveis deviam dar um choque a quem as usasse. Mas o pior são as pessoas. Como é que elas querem que eu esteja atenta às coisas importantes que dizem, se o que dizem de importante vem misturado com banalidades mais triviais que música de elevador?
O tio Basílio por exemplo. Quando fala:
– Já repararam que já não chove há cinco dias bla bla bla bla bla bla por isso amanhã podíamos ir todos visitar a Tia Alzira.
Com ele habituei-me a ouvir o início, que é como um indicativo que me diz: Teresa, desliga.
Depois, no dia seguinte, vamos todos visitar a tia Alzira e a meio da tarde, para escândalo de toda a gente, eu pergunto-lhe pelo Pantufas.
Além da humilhação do momento, ainda tenho de ouvir o Tio Basílio na viagem de regresso.
– Sabes, Teresa, um dia lá na empresa bla bla bla bla bla como é que tu vais perguntar pelo gato se ainda ontem eu te disse que o gato tinha morrido?!
As pessoas deviam aprender a ser mais silenciosas para que se consiga ouvir quando falam. Não digo como o meu pai, que é realmente um exagero, mas pelo menos como eu.
Grito
O terceiro dia em que a minha avó gritou foi o mais difícil. No primeiro dia, estranhámos, no segundo equilibrámos e, ao terceiro, quando a avó que grita já quase tinha entrado na rotina da minha família, o meu irmão, sem avisar, apareceu com a namorada para jantar.
Se já vos aconteceu passear pela vossa cidade de sempre com um turista que não a conhece, já sabem o que aconteceu. Para aqueles que nunca foram guias turísticos, nem mesmo amadores, eu explico. Ganha-se um olhar novo. Vemos coisas que nunca vimos. Temos um olhar fresco. Coisas que sempre tivemos à nossa frente, e em que nunca reparamos, tornam-se evidências insuportáveis.
Pelo olhar fresco da namorada do meu irmão, todos percebemos que era impossível viver com aquilo. E que nem era aceitável ter deixado a coisa chegar àquele ponto.
Primeiro, a namorada do meu irmão tentou ser romana em Roma, mas não conseguiu. E à medida que ela ia desistindo, ia-nos arrastando com ela num desconforto crescente.
A meio da refeição, o único som que se ouvia, misturado com o tilintar angustiado dos talheres, eram os gritos da minha avó. Apenas a Deolinda, nas idas e vindas entre a sala e a cozinha, tentava ainda manter uma réstia de normalidade obscena.
– Espero que a menina goste do meu esparregado, aqui a Teresinha adora-o, e não se cansa de o comer, vou buscar mais cebola…
Mas até ela se rendeu e acabou imóvel entre a cozinha e a sala de olhar fixo, e cada vez mais triste, na personagem central do drama.
Já nem os talheres cantavam. Ao silêncio, onde o grito se evidenciava cada vez mais, acresceu o imobilismo em que todos tínhamos caído.
E foi então que o meu pai perguntou:
– Afinal, que se passa, Dona Sílvia?
– Sabes, Duarte, eu nunca fiz um origami. Uma coisa bela e absolutamente inútil. É o belo mais belo, o que não serve para nada. Dizem que quem fizer mil garças terá direito a ver um desejo realizado. E eu, nem um aprendi a fazer. Mas se calhar é isso, é a entrega ao belo inútil que nos torna úteis. Apenas aprendi as coisas práticas. E essas, agora só me dão vontade de gritar.
FIM