Enquanto comecei a pensar neste texto e depois o escrevi, ocorreu mais um grande massacre nos Estados Unidos, daqueles cuja notícia corre o mundo e atravessa o Atlântico, seja pelo número inusitado de mortos, seja pela idade precoce das vítimas, seja, enfim, por um qualquer pormenor mais horrível e escabroso, que as agências e os jornalistas consideram ser digno de realce, porque, e apenas porque, será impressionante para um auditório sedento de ser impressionado.
É possível, talvez provável, que entre o início e o fim da leitura deste texto tenha ocorrido mais um homicídio em massa numa escola norte-americana, porventura um massacre grande, com muitas crianças mortas, porventura um dos pequenos, daqueles que já nem noticiados são.
Quem consultar a Wikipédia em língua inglesa e clicar na entrada “List of school shootings in United States”, nem precisa de ler uma linha: basta-lhe percorrer a listagem com o cursor do rato, ver o tempo que demora até ela chegar ao fim, vislumbrar no ecrã em movimento a quantidade indescritível de incidentes sobre incidentes, a um ritmo quase diário, às vezes até mais do que isso. No dia em que escrevo estas linhas – 30 de Março de 2023 –, ocorreu um tiroteio em Winston Salem, Carolina do Norte. Três dias antes, sete mortos em Nashville, Tennessee; a 25 de Março, tiros em Orangeburg, Carolina do Sul; a 22 de Março, ocorrência dupla, em Denver, no Colorado, e em Dallas, no Texas. Também no Texas, dois dias antes, 20 de Março, um morto em Arlington; de novo Orangeburg, a 3 de Março e, no dia 11, em Waterville, no Maine. Assim se passou este Março nas escolas da América, devendo notar-se que falamos apenas de tiroteios em escolas, deixando de lado as mortes à porta de igrejas, no interior das lojas e dos supermercados, em plena rua, de noite e de dia.
É disso que trata o último livro de Paul Auster, Bloodbath Nation, acabado de sair nos EUA (Faber, 2023). Assim que o comprei, logo uma amiga me disse que tinha perdido a paciência para os livros de Auster, tantos eles são, sempre iguais e confessionais, até por vezes banais, sem rasgo nem chama. Seja, admito. Este, porém, é diferente, é um ensaio, um longo e quase académico ensaio, com citações e referências, e, sobretudo, com as arrepiantes fotografias de Spencer Ostrander, retratos de um silêncio absoluto, tirados em locais onde ocorreram massacres, que me fizeram lembrar a série Bedrooms of the Fallen, com que em 2003-2007 o australiano Ashley Gilberson captou os quartos vazios, nas casas dos pais, dos jovens soldados mortos no Iraque e no Afeganistão. Não sei se o que mais impressiona serão as fotografias de Ostrander em si mesmas, de lugares anódinos sem presença humana, ou as legendas que as acompanham, indicando o número de vítimas e a tragédia ali processada. Um detalhe sinistro: muitos desses locais, talvez a maioria, outrora cheios de vida, fecharam portas, abriram falência, foram encerrados pelos donos ou pelas autoridades; em suma, continuam hoje tingidos de sangue e marcados pelo odor da morte e assim ficarão por muitos e muitos anos. Noutras situações, arrasaram-se as casas ou os edifícios, demoliu-se tudo quanto lá existisse no dia em que ocorreu o massacre, na vã esperança de que esse apagamento facilite o trabalho da desmemória e do olvido. As fotografias de Ostrander confrangem pela sua banalidade, por serem simples planos de ruas e de casas, sem nenhum atractivo digno de menção e, sobretudo, sem nada que sugira ou indique que ali houve uma tragédia. Nessa banalidade, elas mostram, no fundo, a omnipresença do perigo de morte em todos os lugares da América contemporânea, um local onde, verdadeiramente, ninguém está seguro e a salvo de um atirador furtivo, munido de uma metralhadora e da intenção de matar en masse.
As estatísticas de Auster são de todos conhecidas e, provavelmente, encontram-se já desactualizadas ao fim das poucas semanas que mediaram entre a publicação do seu livro e a escrita deste meu escusado artigo. Ainda assim, talvez deva recordar-se que um norte-americano tem 25 vezes mais probabilidades de ser morto a tiro do que um cidadão dos outros países desenvolvidos. Mais: entre os 24 países mais desenvolvidos do mundo, 82% das mortes por armas de fogo ocorrem na América, uma nação que tem actualmente 393 milhões de armas de fogo nas mãos dos seus cidadãos – o que dá mais de uma arma de fogo por cada homem, mulher ou criança.
Em A América e os Americanos e Outros Textos (Livros do Brasil, 2022), John Steinbeck conta uma história passada com Lincoln, provavelmente apócrifa: quando o desafiaram para um duelo, cabendo-lhe escolher as armas, o velho Abraão terá escolhido o arremesso de estrume a cinco passos de distância. Hoje, não há duelos com estrume e aqueles que querem combater, ou simplesmente matar, fazem-no com espingardas de repetição, armas quase de guerra, muitas vezes mais poderosas e letais do que as das forças de segurança (há muito mais armas nas mãos de civis do que nas mãos de todos os membros das Forças armadas e de segurança).
O que se aprende no livro de Auster não é a descrição dessas armas, nem sequer a enumeração das estatísticas, mas outros factos que dão que pensar. Um deles, essencial, é o das vítimas não-mortais, os feridos graves com sequelas para toda a vida, gente estropiada, acamada eternamente, em coma até ao fim dos seus dias – gente que geralmente esquecemos, obcecados que estamos pela contabilidade dos mortos, um exercício que é feito, de resto, por muitos potenciais matadores, na ânsia de baterem recordes e da celebridade instantânea. Há quem tente argumentar com o número de mortos nas estradas, com as estatísticas da sinistralidade rodoviária, um argumento que também entre nós é usado para relativizar as baixas da guerra colonial. Simplesmente, e como diz Paul Auster – numa afirmação banal, é certo, mas que precisa ser lembrada –, todas ou quase todas as mortes rodoviárias são acidentais, enquanto quase todas as mortes com armas de fogo são intencionais. E outra diferença, claro: a circulação rodoviária ainda tem a “externalidade positiva” de trazer um benefício para todos e para cada um, o deslocar-se de automóvel numa estrada; da posse de armas de fogo não se extrai nada de positivo, por muito que o lóbi da National Rifle Association (NRA) tente dizer que, sem armas, a América estaria ainda mais insegura e perigosa.
É argumento que não colhe pelo seguinte: nos últimos 50 anos, decresceu cerca de um terço o número dos lares norte-americanos onde existem armas de fogo. Ou seja, há cada vez mais armas, mas elas nas mãos de um número cada vez mais reduzido de pessoas. A generalidade da população encontra-se, pois, mais desarmada (na lógica da NRA, mais “desprotegida”), mas o número de armas e o seu poder de fogo não cessam de aumentar.
Isto leva-nos a uma questão complexa, que Anthony Giddens enunciou há anos no seu manual de Sociologia, que está disponível online. Diz ele que o problema não é a posse de armas em si mesma, pois na Suíça cada adulto tem uma arma em casa, por imposições de serviço militar sazonal, mas o número de mortes com armas de fogo é infinitamente mais baixo do que nos EUA. Daí que a questão da América não seja a posse de armas, mas a da posse de armas em articulação com uma dada “cultura”, mais propensa e favorável à violência. O difícil será dizermos em que consiste tal “cultura”, e sabermos até que ponto está enraizada entre os americanos. Pelos vistos, não está, pois, a crer na estatística de Paul Auster (p. 43), tem diminuído, e diminuído muito, o número dos americanos que têm armas em casa. Anthony Giddens, resvalando um pouco numa certa sociologia de café, alude aos primórdios dessa “cultura”, aos tempos da conquista do Oeste Selvagem. Ora, e este é um dos dados quanto a mim mais interessantes do seu livro, Paul Auster, baseando-se em alguns estudos históricos (como este, de Robert Spitzer), vem mostrar, por um lado, que existiu no passado um forte controlo no armamento e, por outro, que, como disse W. Eugene Hollon no livro Frontier Violence, o Velho Oeste era “muito mais civilizado, mais pacífico e mais seguro do que a América dos nossos dias.” O livro de Hollon é de 1974, muito anterior ao actual frenesi armamentista, note-se (mas se quiserem um livro recente, de 2018, Loaded: A Disarming History of the Second Amendment, de Roxanne Dubar-Ortiz, que Auster cita, mas que não li). Assim, Auster vem desfazer um mito, o mito do faroeste: ao contrário do imaginário dos westerns, a América desses anos seria uma terra de índios e de cowboys, é certo, mas muito menos violenta do que supomos – sobretudo, muito menos violenta do que é hoje. Porquê? Porque, em regra, mal chegavam a uma cidade, os forasteiros eram obrigados a entregar as suas armas. Em 1881, no ano mais sangrento da cidade de Tombstone, foram mortas cinco pessoas, três das quais na célebre refrega de O.K. Corral. Hoje, 100 americanos são mortos à bala por dia.
Talvez a explicação não seja, pois, cultural, como pretende Giddens, mas histórica, como defende Auster, o qual, no entanto, não é absolutamente convincente na sua tentativa de demonstração de que, na génese da Segunda Emenda, não estava em causa a atribuição aos cidadãos de um direito livre e absoluto de possuir armas, ao contrário do que defendem as interpretações “originalistas” da Constituição americana, caras aos sectores de direita. Seja como for, e aí Auster é convincente, o presente fenómeno armamentista é bem mais recente do que julgamos: na sua expressão e dimensões actuais, terá 20, 30 anos, no máximo. Contudo, adquiriu uma envergadura tal – 393 milhões de armas – que se tornou insolúvel. Ninguém de bom senso ousa pensar que, se acaso o Congresso aprovasse uma lei a impedir o porte de armas, estas seriam ordeiramente devolvidas às autoridades sem dramas nem sobressaltos. Trata-se, ademais, de uma impossibilidade absoluta na actual conjuntura política da América, cada vez mais crispada e radicalizada, de parte a parte, mas sobretudo com um Partido Republicano enlouquecido, com um Supremo Tribunal dominado por juízes “trumpistas” e radicais, com a NRA a canalizar milhões para republicanos e democratas (o problema, aliás, nem é de agora: em 1996, o CDC – Centers for Disease Control foi proibido de usar fundos federais para desenvolver pesquisas que de algum modo “pudessem ser usadas para advogar ou promover o controlo de armas”).
Perante um problema desta dimensão – insiste-se: 393 milhões de armas à solta –, as propostas de Auster e dos democratas parecerão tímidas, minimalistas, atrevendo-se a defender tão-só uma redução dos calibres permitidos e um pouco mais de moderação e controlo na venda das armas mais poderosas e letais. Grande dilema, portanto: propor um controlo drástico do armamento é irrealista e perigoso, podendo gerar no limite um conflito sangrento, nas raias da guerra civil; propor medidas mais pontuais e localizadas será um enorme avanço, poderá ter resultados visíveis, mas não fará desaparecer o espectro de novos e grandes massacres, pois, com armas mais ou menos potentes, eles sempre ocorrerão. Nada de muito a fazer, portanto.
O que impressiona e confrange é que, repito, não é uma maioria que detém as armas, antes uma minoria cada vez mais exígua – mas mais armada. Nas sondagens e nos inquéritos de opinião, poderá haver muita gente a defender a posse de armas, mas, a crer no que diz Paul Auster, o número dos detentores de armamento tem vindo a decrescer ininterruptamente nos últimos 50 anos.
A América deixou-se cair, assim, na triste situação de ser hoje uma República semi-soberana, pois o Estado perdeu aquilo que, em termos clássicos, era um atributo da sua soberania na ordem interna, o poder de impor a sua autoridade a qualquer outro que se lhe opusesse (veja-se livro de Miguel Morgado, Soberania. Usos e abusos na vida política, Dom Quixote, 2021). Nem se diga que haverá problemas igualmente insolúveis, como a Lei Seca tão bem mostrou, isto é, questões em que um Estado soberano, mesmo que queira, não conseguirá fazer valer a sua vontade, o que acontece desde o tráfico de estupefacientes à prostituição, passando pela criminalidade ou pelos acidentes na estrada. É óbvio que a soberania não pode ser hoje conceptualizada nos termos clássicos atrás referidos, mas do que se trata não é de acabar com as armas, tão-só de disciplinar o seu uso, de morigerar os calibres, diminuir o seu potencial letal. Ou seja, não é uma questão binária de o Estado ter ou não ter soberania, mas sim uma questão de saber qual o grau e a intensidade da soberania que se tem ou não tem, qual a capacidade de que uma República dispõe para actuar. E, nesse plano, 393 milhões de armas mostram que, no plano do controlo do armamento, o grau de decisão, a margem da liberdade de agir, a escala do poder da Federação e de cada um dos Estados é escassa, muitíssimo escassa, absurdamente diminuta (como as piedosas mas inconsequentes proclamações de Biden têm mostrado, revelando que talvez seja mais fácil diminuir os efeitos do aquecimento global do que os desta corrida armamentista…). Em suma, e sem exagero, a democracia americana encontra-se refém de um conúbio perverso entre o poderoso lóbi da NRA, uma classe política corrompida e um conjunto cada vez mais reduzido de cidadãos armados até aos dentes. Questão que leva a uma outra: enquanto a América não mudar o seu modelo de financiamento da vida política, será incapaz de mudar o que quer que seja. É aí, sobretudo aí, que reside o problema maior, aquele de que tudo depende. Mas, em relação a ele, não parece existir grande vontade de mudança entre republicanos e democratas. Enquanto isso, mantém-se um impressionante ritmo de massacres, quase à razão de um massacre por dia, para não falarmos de toda a abominável quantidade de mortes com armas de fogo.
Noticiou anteontem a CNN: tendo ultrapassado os acidentes rodoviários em 2020, as armas de fogo são hoje a principal causa de morte das crianças e dos adolescentes americanos, responsável por 19% dos óbitos. Desde o início do ano, em apenas três meses, já ocorreram 130 mass shootings nos EUA, and counting. Perspectivas de melhoras? Nenhumas.
Paul Auster, Bloodbath Nation, fotografias de Spencer Ostrander, Londres, Faber & Faber, 2023, 136 pp.
____
Fotografia de Spencer Ostrander, em ‘Bloodbath Nation’: Marjory Stoneman Douglas High School em Parkland, Florida.