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Regresso a Fargo

É sempre entre a última de novembro e o dia de fazer a árvore de natal que chega o frio aqui a casa. Saem os agasalhos da arca de fecho de cobre e os cachecóis que deixei de usar quando entrei para a faculdade, com barras de cores alternadas, preto e branco ou amarelo. É sempre nesta altura que me volta a apetecer ver o Fargo, dos irmãos Coen, um filme de 1996. Quando me perguntam qual é o filme da minha vida, às vezes digo o Fargo, mas eu sei que não é; há outros que foram muito mais importantes. Ao mesmo tempo,  Fargo exerce em mim um magnetismo que tem a ver com a chegada do inverno, por um lado, e talvez pela razão de que aquele inverno do filme é o que melhor acompanha o frio da casa que habito, mas sem neve nem os graus celsius descontrolados. Não, falo de um frio físico, mas também de um frio triste. Se calhar também gosto muito do Fargo porque a sua banda sonora é um inverno em estado puro, qual Vivaldi qual carapuça. Eu nunca estive no Dakota Norte, nem tão pouco no continente americano, mas aqueles acordes são o mais próximo que senti quando saio do trabalho e me cortam as rajadas de vento a ponto de me desfigurar por dentro. O frio cantado sobre aquele Dakota é igual ao frio que sinto nos meus dias mais tristes. Mas pensando bem ainda não é esta a verdadeira razão pela qual Fargo é um filme ao qual sempre volto. Para muitas pessoas, o verdadeiro magnetismo está centrado na interpretação de Frances McDormand, uma mulher polícia, grávida de muitos meses, casada com um colecionador de borboletas. Para mim, o centro, além das trompas e harpas e violinos tristes cujo som embala o branco imaculado de uma neve muda, como se ali todo o tempo tivesse parado, o verdadeiro centro está em Jerry Lundegaard, a personagem central interpretada por William H. Macy. Virão os críticos emendar-me e dizer que Jerry não é o protagonista, porque os realizadores estavam a tirar prazer de um conceito de filme que roda entre várias centralidades, e é verdade, mas Jerry, em cada plano a que vem, apaixona-me. Às vezes, quando estou triste, penso que a tristeza que eu tenho em nada se compara à expressão que ele tem, em cada plano do filme. Jerry é o retrato perfeito de um homem só. É um ângulo menos referido, mas é sobretudo um produto desconcertante de uma imagem de masculinidade à qual não conseguiu ou não soube corresponder. É engraçado pensar que se fizeram alguns filmes norte-americanos, na década de 80 e princípio dos anos 90, ligados à ideia de sucesso, retratando um grupo de colarinhos azuis que tirava partido da especulação em Bolsa. Michael Douglas ou, no feminino, Melanie Griffith deram rosto a esta incorporação da palavra «sucesso» no mundo do trabalho. Mas, em 1996, os irmãos Coen estavam mais interessados em falar do contrário da ideia de sucesso. Imaginem um homem que sucessivamente tenta fazer algo para se sentir notado, pequena nota que seja. Imaginem-no casado e na convivência imposta de um sogro que transpira uma masculinidade absolutamente centrada na ideia de poder, e que o humilha a cada passo, no exercício desse mesmo poder. O que está em Fargo é a luta por duas expressões do que ser homem significa. E a expressão perdedora é a de alguém sem autoridade, sem firmeza, sem sucesso, sem beleza, sem um discurso solto e encantatório, um homem sem qualidades nenhumas, o que nos podia levar a pensar que ele não é um homem, mas é justamente isso que o sogro deste homem pensa. Então Jerry decide fazer alguma coisa completamente insana para se fazer notar, e mesmo assim corre mal: simular o rapto da mulher e pedir resgate. A um início em que assistimos à história de um homem triste e só, sem qualquer reconhecimento da sua condição masculina, Fargo dá-nos a queda – se é possível cair de um ponto em que já nos encontramos subterrados – ainda mais funda. E, portanto, o filme acompanha a tragédia de alguém que não era ninguém a ser reduzido a menos que um floco de neve nas imensas pradarias brancas do Dakota do Norte. 

Neste frio que desde há algum tempo se instalou, aconteceu mais uma coisa que me voltou a aproximar de Fargo. Nos tesouros escondidos da Netflix, encontrei “O Adversário”, realizado por Nicole Garcia e interpretado pelo magnífico Daniel Auteuil, no papel de Jean-Marc Faure. Imaginem a minha surpresa quando me apercebi que o filme, lançado em 2002, se baseia numa histórica verídica que teve o seu desfecho trágico no ano de 1996, ano de lançamento de Fargo. Jean-Marc e Jerry, os protagonistas de ambos os filmes, não se conhecem. O primeiro foi condenado por familicídio. Matou a mulher, os dois filhos, os seus pais. Em face do horror deste desfecho a que só temos acesso no final, há uma coisa que me despertou a atenção. Jean-Marc Faure simulou durante quase 20 anos uma vida profissional que não tinha. Essa era uma vida profissional de sucesso e de reconhecimento por parte de todos quantos o circundavam. No contraste dessa vida, falsa e absolutamente inventada, o filme dá-nos acesso ao que terá sido o quotidiano triste e só de um homem que inventou um homem que não era. Muitos dos seus dias eram passados a viajar sem rumo, ocupando as horas vazias e simulando estadas em hotéis de renome. Os seus pontos de paragem eram aeroportos, onde quase nunca embarcou, e parques de estacionamento, onde comia sandes e ouvia programas de rádio até se cansar. Numa dessas sequências, vemos Daniel Auteuil junto ao carro, num parque de estacionamento, só, a rir, a rir de um programa de rádio com espírito de comédia. Mas há ali um segundo em que percebemos que aquele riso não é mais que a máscara de uma tragédia que se avizinha marcada pela incapacidade de assumir que não teve sucesso algum, que não fez os exames, que nunca foi médico, que nunca trabalhou para uma entidade internacional. Uma das cenas mais tristes de Fargo é aquela em que Jerry é filmado num parque de estacionamento gelado, dentro de um carro, sem saber como sair da teia de nenhuma realização conseguida. Assim como este plano de Jean- Marc. Dois homens num inverno profundo de masculinidade que não souberam como encarar e se desfiguraram por dentro, desembocando numa violência sem medida e sem perdão.  

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