Escritório do Senhor Doutor.
O Senhor Doutor Couto come uma banana.
Entra Asdruval a correr.
Asdruval – Doutor, Doutor, Doutor Couto dá licença?
Dr.Couto – Ah é você Asdruval! Entre, entre. Estava precisamente a pensar em si.
Asdruval parando de correr – Ai é? Doutor Couto, mas eu não fiz nada de errado!
Dr.Couto – Não, Asdruval claro que não. Eu também não penso só nos meus trabalhadores quando eles fazem alguma coisa errada.
Asdruval – Não Dr. Couto?
Dr.Couto – Não. Claro que não! Por vezes eles vêm-me à cabeça sem razão nenhuma aparente.
Asdruval – Ah sim? Assim sem mais nem menos?
Dr.Couto – Exactamente e depois lá tenho eu que ficar a magicar como é que os vou despedir.
Asdruval – É Dr. !?
Dr.Couto – Claro, o Asdruval repare, eu não posso permitir que os trabalhadores desta empresa me entrem assim de repente pela cabeça adentro.
Asdruval – Ah, o Sr Dr. desculpe, mas eu, se lhe vim à ideia foi sem querer, não era minha intenção incomodar o Sr. Dr.
Dr. Couto – Não tem mal, por hoje passa. Ó Asdruval diga lá o que queria.
Asdruval – Eu Sr. Dr ?
Dr. Couto – Então o Asdruval entra por aqui dentro aos gritos, é porque queria alguma coisa. O que é que o Asdruval queria falar comigo?
Asdruval – Ah é verdade (retoma a postura nervosa) Dr. Couto aconteceu uma desgraça!
Dr.Couto – Então Asdruval tenha calma, de certeza que não é assim tão grave. Você é uma pessoa nervosa hum?
Asdruval – Não Sr. Doutor, mas é que… Foi inesperado… e não estávamos a contar… e eu agora nem sei o que fazer…
Dr. Couto – Asdruval, Asdruval, Asdruval, Asdruval … tenha calma. Não é assim que se enfrentam os problemas, homem! Sente-se, respire fundo. Cumprimente-me homem. Que diabo, estas coisas não podem ser assim. Você chega, cumprimenta-me, senta-se, tudo com calma, está bem? E depois então vamos falar dos problemas… O Asdruval veja, isto é das coisas mais importantes nas relações laborais, este contacto é fundamental Asdruval, que diabo. Sente-se homem, sente-se.
Asdruval – Obrigado Doutor Couto.
Dr.Couto – E então Asdruval, a família como é que vai?
Asdruval – Eu não tenho família! Eu moro sozinho! Quer dizer eu moro com a minha mãezinha, mas ela já nem fala muito nem nada, coitada, só assim de vez em quando, lá vai dizendo uma palavra: “sopa” “tá quente” “ mais”… É assim!
Dr.Couto – Muito bem, muito bem (silêncio) E agora o Asdruval perguntava-me pela minha família.
Asdruval – Ah, Sim, sim.
Dr.Couto – Então pergunte homem? Repare que nós não podemos trabalhar das oito às cinco ignorando as realidades dos universos dos indivíduos com quem trabalhamos, não é? Pergunte lá então.
Asdruval – E na família do Sr. Dr., está tudo bem?
Dr.Couto – Está Asdruval, a minha família está óptima. Está a ver homem, não custou nada, Já conversamos um pouco, Já fortalecemos os laços que nos unem e já podemos falar do problema que você me traz. E é importante manter estas uniões, percebe? Diga lá então.
Asdruval – Digo?! Ah … (Pausa e Asdruval fica novamente agitado) Bom, Sr. Doutor o problema é que …
Dr.Couto – Lá está você, Asdruval, tenha calma, Você é nervoso?
Asdruval – Eu não Senhor Doutor. Foi inesperado… e eu não sabia….
Dr.Couto – Você é nervoso, você é muito nervoso. E sabe que manter a calma é uma característica muito importante nos cargos de chefia. Veja bem Asdruval, eu não posso ter uma pessoa nervosa numa posição de chefia.
Asdruval – O meu cargo não é de chefia.
Dr.Couto – Está bem, o Asdruval pode não ter um cargo de chefia, mas é uma das rodas dentadas fundamentais desta grande engrenagem que são as Indústrias Couto Parafusos Limitada. E eu não posso ter uma roda dentada histérica no meio da engrenagem, não é?
Asdruval – Pois não, Senhor. Doutor.
Dr. Couto – O Asdruval tem que se tornar uma pessoa mais calma, aprender a enfrentar os desafios que diariamente lhe aparecem pela frente e encará-los com calma e ponderação. O Asdruval já pensou em fazer Ioga?
Asdruval – Não Senhor Doutor… eu jogo Xadrez. Por correspondência… com um romeno.
Dr.Couto – Pois, mas olhe que Ioga ia-lhe fazer bem. Vamos experimentar Asdruval, sente-se assim. (Sobem para cima da secretária) Fique calmo, isso agora expire, inspire, ou ao contrário, como lhe der mais jeito. Isso, bom diga lá, calma e pausadamente, o que é que aconteceu.
Asdruval – (concentrado na Ioga) Foi … na … fabrica … que … tudo … aconteceu … Começou … no …. armazém … oito ….
Dr.Couto – Sim Asdruval, diga…
Asdruval – Um… incêndio.
Dr.Couto – Um fogo Asdruval!? Mas, você é maluco ? (Para o intercomunicador) Dona Lurdes chame imediatamente os bombeiros. (Desliga intercomunicador) Então a fábrica a arder e o Asdruval põe-se para aí a falar da família, de xadrez e disparates do género?
Asdruval – Não Senhor Doutor, foi o Senhor Doutor que …
Dr.Couto – Cale-se homem. O fogo já alastrou muito?
Asdruval – Não Senhor Doutor, o fogo já foi apagado.
Dr.Couto – Ai já ?! Mas então, você entra-me por aqui dentro aos gritos, a dizer que há fogo, que há fogo, e afinal o fogo já foi apagado?
Asdruval – Foi Senhor Doutor, o Rocha pegou no extintor e apagou-o.
Dr.Couto – Ah bom! Mas então porque é que me entrou por aqui dentro a incomodar-me com um problema que já está resolvido. Eu já lhe falei da espiral do desenvolvimento, não já Asdruval?
Asdruval – Já Senhor Doutor, só que…
Dr.Couto – E então?! Vamos lá ver: eu invisto o meu tempo na supervisão, fruto disso as vossas competências melhoram, assim estabelece-se a confiança, eu já posso distribuir mais responsabilidades e depois finalmente posso delegar, não é?
Asdruval – É Senhor Doutor.
Dr.Couto – E então?! Você assim quebra-me a espiral toda. Porque é que me vem falar de fogos já apagados? Bom, o Rocha, a partir de hoje, fica responsável por apagar os fogos, e não me chateiem mais com isso.
Asdruval – Está muito bem Sr. Doutor.
Dr.Couto – Eu não tenho que andar a resolver todos os problemas que acontecem nesta fábrica, principalmente problemas que já estão resolvidos.
Asdruval – Ó Senhor Doutor mas o problema não era esse.
Dr.Couto – Não?
Asdruval – O problema é que o Silva escorregou na neve carbónica do extintor que o Rocha usou e bateu com a cabeça.
Dr.Couto – E só agora é que você me diz isso (Para o intercomunicador) Dona Lurdes ligue para o 112 e mande vir uma ambulância, há um trabalhador que se aleijou. (Desliga intercomunicador) Percebeu Asdruval? É assim que se resolvem os problemas, que necessidade tinha o Asdruval de me vir falar de fogos quando o problema é o Silva ter rachado a cabeça. Você tem que ter poder de síntese, Asdruval. Não pode entrar por aqui, primeiro pôr-se a falar da família e de xadrez, depois vir-me com historinhas de fogos, de extintores e do Rocha e da neve, quando afinal o problema é uma cabeça rachada. Vá sempre directo ao assunto, não se perca em pormenores que não têm a mínima importância. Sintetize, Asdruval.
Asdruval – Está muito bem Sr. Doutor. Um olho negro, o Machado com um machado e o Santos fechado na arrecadação.
Dr.Couto – O quê Asdruval?!
Asdruval – Estava a sintetizar Sr. Doutor.
Dr.Couto – A sintetizar o quê? Então o Silva bate com a cabeça e ficou com o olho negro?
Asdruval – Não Senhor Doutor, quem ficou com o olho negro foi o Machado que começou a rir do Silva ter caído.
Dr.Couto – Já percebi. E o Silva deu-lhe um murro?
Asdruval – Não, quem deu o murro foi o Santos.
Dr.Couto – O Santos, mas o que é que o Santos tem a ver com a historia?
Asdruval – Nada Senhor Doutor. Só como não gosta do Machado, começaram os dois a discutir. Eles já andam pegados há muito tempo
Dr.Couto – Ai eles não se dão? Mas quê? Tem a ver com a Marta?
Asdruval – Com a Marta, Senhor Doutor?!
Dr. Couto – A Marta Fonseca do atendimento…
Asdruval – Ai é?!
Dr.Couto – Então você não sabe que o Machado e a Marta coisa e tal e o Santos…
Asdruval – Não, Senhor Doutor, é por causa da secretária?!
Dr.Couto – O quê?! Por causa da D. Lurdes, a minha secretária?!
Asdruval – Não, Senhor Doutor, a secretária, secretária.
Dr.Couto – A secretária, secretária?!
Asdruval – Sim, a secretária. A mesa
Dr. Couto – Ah, já percebi, a secretária mesa!
Asdruval – Sim, Senhor Doutor, eles zangaram-se em 1995 quando o Senhor Doutor os trocou de secretária.
Dr.Couto – Ai é? Eu troquei-os, foi?
Asdruval – Foi Senhor Doutor, e desde esse dia, que um se queixa que a secretária dele tem pouca luz e o outro que tem frio por estar junto à janela, mas como o Senhor Doutor os mandou trocar…
Dr. Couto – Que disparate, eu só os mandei trocar para ficarem organizados por ordem alfabética. Do Alves na entrada da sala, até ao Zeferino no fundo da sala. Foi apenas uma ideia para melhorar a organização da nossa indústria. Se eles estavam mal voltava-se a trocar.
Asdruval – Pois, mas como foram ordens do Senhor Doutor.
Dr.Couto – E o Machado?
Asdruval – O Machado está a meio da sala.
Dr. Couto – Ele está lá agora?
Asdruval – Não Senhor Doutor Agora o Machado pegou num machado e foi atrás do Santos que se fechou na arrecadação e agora diz que não sai de lá.
Dr.Couto – Não sai?
Asdruval – Diz que não, pelo menos enquanto o Machado estiver com o machado cá fora à espera dele.
Dr.Couto – Então o Machado que pouse o machado e o Santos que saia.
Asdruval – Mas o Machado diz que não pousa o machado.
Dr.Couto – Mas isto tem que ter uma solução Asdruval.
Dona Lurdes no intercomunicador – Senhor Doutor Couto estão aqui os bombeiros a perguntar onde é o fogo e está lá embaixo a ambulância à procura do ferido.
Dr.Couto – Mas que bombeiros e que ambulância D. Lurdes?
Dona Lurdes – Os bombeiros e a ambulância que o Senhor Doutor mandou chamar.
Dr.Couto – Viu, viu, Asdruval, viu o que fez?
Asdruval – Eu Senhor Doutor?!
Dr.Couto – Você só faz confusão Asdruval. Agora o que é que eu digo aos bombeiros?
Asdruval – Ora bom, podia dizer que foi um falso alarme.
Dr.Couto – Você está maluco Asdruval? Você sabe de quanto é a multa? E depois a vergonha de ter que dizer que errei.
Asdruval – Realmente…
Dr.Couto – Só há uma solução. (Vai ao intercomunicador) Dona Lurdes?
Dona Lurdes – Sim Senhor Doutor Couto.
Dr.Couto – O Silva que pegue fogo à arrecadação onde o Santos está fechado, os bombeiros já têm um fogo para apagar, o Santos sai cá para fora, o Machado dá-lhe com o machado, e a ambulância já tem um ferido para levar. E fica tudo resolvido.
- Lurdes – Está muito bem Senhor Doutor Couto.
(Couto acende o cigarro)
Asdruval – O Senhor Doutor tem a certeza?!
Dr.Couto – Asdruval, não me contradiga, é nos momentos de crise que é necessário usar soluções expeditas.
Asdruval – O Senhor Doutro manda.
Dr. Couto – Isso, está tratado, já não se fala mais nisso. Asdruval, é mesmo bom que esteja aqui
Asdruval – Obrigado Senhor Doutor, se soubesse que o Senhor Doutor ia ficar tão contente já tinha vindo ontem.
Dr. Couto – Mas não, mas não, ontem não valia a pena.
Asdruval – Ah não Senhor Doutor?
Dr. Couto – Não Asdruval, eu ontem ainda não tinha partido o cinzeiro.
Asdruval – Ah!!
Dr. Couto – O Asdruval importa-se?
Asdruval – Ah, o Senhor Doutor quer que eu lhe vá buscar um cinzeiro?
Dr. Couto – Não Asdruval, não vale a pena, é só um cigarro. Faça uma conchinha
Asdruval – Uma conchinha Senhor Doutor ?!
Dr. Couto – Sim Asdruval, com as mão… isso… isso. É uma chatice, um médico mandou-me parar de fumar, de forma que hoje logo de manhã parti o cinzeiro.
Asdruval – Ah partiu o cinzeiro.
Dr. Couto – Pois. Um homem quando toma uma decisão tem que ser decidido. Como eu sempre digo, um homem tem que agarrar o touro pelos cornos, sacudir a poeira e continuar.
Asdruval – Não Senhor Doutor, o levantar e sacudir a poeira é quando se cai…
Dr. Couto – Oh Asdruval, valha-me Deus, mas o que é que você pensa que o touro nos faz quando o agarramos pelos cornos?
Asdruval – Muu?!.
Dr. Couto – Bom, Asdruval. A situação é esta, os ventos de mudanças que varrem a Europa, chegam também a Portugal, e ou nós preparamos ou somos varridos. É, Shuuum, lá vamos nós.
Asdruval – Shuuu, lá vamos.
Dr. Couto – O fundamental Asdruval, é estarmos todos reunidos em torno de uma ideia. De um objetivo comum, unidos em torno de um ideal, de uma ideia de liberdade, aquela ponte tem que ser destruída.
Asdruval – Ponte Senhor Doutor ?!
Dr. Couto – Não ligue, eu é que sempre quis dizer isto. Asdruval, eu resolvi que esta empresa vai acabar com as discriminações.
Asdruval – Ai o Senhor Doutor Couto vais inscrever os ucranianos na segurança social?
Dr. Couto – Não, que disparate Asdruval. Não é nada disso.
Asdruval – Vamos voltar a contratar crianças?
Dr. Couto – Não Asdruval, a questão são as mulheres. Esta coisa das mulheres ministras sensibilizou-me para a problemática da mulher em Portugal.
Asdruval – Ah, pois, pois, a problemática da mulher.
Dr. Couto – De forma que eu decidi que vou acabar com as discriminações salariais nesta empresa.
Asdruval – Ai é?! Eu acho muito bem Senhor Doutor, não faz sentido nenhum ter um homem e uma mulher a fazer o mesmo trabalho e o homem a receber mais. É insustentável.
Dr. Couto – É insustentável.
Asdruval – É insustentável.
Dr. Couto – É evidente Asdruval, é evidente. Não faz sentido nenhum, pagar mais a um homem quando posso ter uma mulher a fazer o mesmo trabalho muito mais barato.
Asdruval – Ah ?!?!
Dr. Couto – De forma, Asdruval, que vou baixar o ordenado a todos os homens desta empresa.
Asdruval – O Senhor Doutor vai-me baixar o ordenado?
Dr. Couto – Repare que foi o Asdruval que disse, a situação como está é insustentável.
Asdruval – Pois, mas…
Dr. Couto – Asdruval repare que nós temos a obrigação moral de acabar com as discriminações…
Asdruval – Sim, sim… mas…
Dr. Couto – E eu acredito que o Asdruval está disposto a este pequeno sacrifício, em prol de uma sociedade mais justa, não é?!
Asdruval – Bom… quer dizer.
Dr. Couto – Eu sabia que podia contar consigo, aliás ainda outro dia disse isso a uma senhora que veio cá para saber se lhe arranjava um emprego, a abrir o nosso correio.
Asdruval – Ah, foi? Ah, veio cá uma senhora para concorrer ao lugar de abridor de correio…
Dr. Couto – Foi Asdruval. Mas eu disse-lhe logo que tinha um funcionário muito competente no lugar.
Asdruval – Muito obrigado Senhor Doutor Ainda bem que o Senhor Doutor está satisfeito com o meu trabalho.
Dr. Couto – Estou Asdruval, gosto muito do seu trabalho e principalmente da sua, como direi, disponibilidade, para fazer o que é melhor para esta empresa e por uma sociedade mais justa.
