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Sombras do Desejo

À primeira vista, o conjunto escultórico Sombras, de 1952, realizado em gesso e em grandes dimensões, parece ser um desvio no desenvolvimento artístico de Maria Martins. Nele, duas figuras antropomórficas estilizadas aparecem ajoelhadas, sem braços e com as cabeças inclinadas em provável sinal de respeito. Uma delas apresenta duas grandes protuberâncias às costas, que lembram asas. Na outra, duas saliências no peito sugerem se tratar de uma mulher. Quando foi exibida pela primeira vez na II Bienal de São Paulo, em 1953, recebeu o título de Cheia de Graça, não deixando dúvida a respeito do tema representado, um dos mais tradicionais da história da arte ocidental: a Anunciação. “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco” são as palavras que, segundo a mitologia bíblica, o arcanjo Gabriel dirigiu a Maria, anunciando a gravidez da virgem e o futuro nascimento de Jesus Cristo.

O aparente desvio estaria em recuperar personagens e temas da Bíblia e da hagiografia cristã – com os quais a artista havia trabalhado em suas primeiras esculturas, como Cristo (atualmente no MoMA) e São Francisco (pertencente ao MET), ainda realizadas em jacarandá, material que abandonaria já nos primeiros anos da década de 1940 – justamente num momento de sua carreira em que as formas iam se tornando cada vez mais abstratas, na tentativa de apreender plasticamente objetos fugidios como o canto, a voz, os ritmos. Nesse sentido, não podemos perder de vista que Maria Martins altera o título de seu conjunto escultórico quando o apresenta novamente em sua última exposição individual, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1956. Aí, ele passa a ser nomeado Sombras, dissimulando, em certa medida, o tema bíblico e, ao mesmo tempo, acentuando o caráter impalpável, fantasmático, das figuras ali representadas. Além disso, ao retomar personagens do cristianismo, Maria Martins não os apresentava mais isolados, como nas já mencionadas esculturas de Cristo e São Francisco, ou ainda em Eva e Salomé, mas em figuração dupla, numa relação tensa de aproximação e afastamento entre duas figuras, recuperando formalmente um tipo de combinação já explorado pela artista numa de suas esculturas mais famosas, L’Impossible, de 1944. 

A imagem da “sombra” já havia sido evocada por Maria Martins em pelo menos duas outras importantes esculturas suas: La femme a perdu son ombre e Le chemin; l’ombre; trop longs, trop étroits, ambas de 1945. Nelas, a sombra está intimamente relacionada ao desejo: ela é o desejo. André Breton, referindo-se precisamente às esculturas L’Impossible e Le chemin; l’ombre…, já observou que o que vemos ali é o “desejo elevado à potência pânica”, sendo, para ele, o desejo “mestre do mundo”. Escrevendo a respeito de Le chemin; l’ombre…, Maria Martins salienta que somos perseguidos “por tudo o que desejamos e não fizemos”; e é isso “que nos impede de sermos verdadeiramente livres”. E, ao falar de La femme a perdu son ombre, alerta: “Ela se libertou tanto que até perdeu sua sombra, ela não tem mais nada: esse é o grande perigo da libertação, voltar a ser escravo da liberdade” .

Como L’Impossible, Sombras versa sobre a impossibilidade (ou negação) da conjunção carnal. Por trazer à tona o tema bíblico, era, na última exposição individual de Maria Martins em vida, a obra que mais evidentemente fazia menção à concepção e, do conjunto apresentado, talvez a de formas mais serenas. No entanto, mesmo aí estava presente a força do desejo. Se assim não fosse, a escultura não despertaria reações como a do crítico Pedro Maciel, que afirma, referindo-se à exposição ― da qual salva apenas “a lírica introdução de Murilo Mendes”: “Tudo quanto é espiritual e elevado em Murilo se transforma em obsceno lascivo em Maria. O mistério da fecundação é repetidas vezes representado com satânicas alegorias infrarreais. O conteúdo da mensagem é sujo” . Curiosamente, o antagonismo com relação à escultora parece favorecer uma caracterização precisa do que está em questão em sua obra. Essa sujeira (essa mácula) ― que o branco do gesso recalca, mas não suprime ― sempre retorna: sujo, afinal, é o próprio desejo; sujo é todo contato que, superando uma impossibilidade física e metafísica de fusão e fecundação, se faz possível, ainda que na forma de um encontro de sombras.

Em suma, talvez possamos ver L’Impossible como a sombra de Sombras, e vice-versa. Numa artista complexa e completa como Maria Martins, desejo e graça, sujeira e santidade, não são polos antitéticos, mas variantes de uma única potência.

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Imagem de destaque: Fotografia Percival Tirapeli; Pesquisa Viviane Comunale; Tratamento de imagem Karen Veiga.

Sombras/ Anunciação, Martins, Maria.

http://acervodigital.unesp.br/handle/unesp/252292 

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