Identifico-me imenso
Na “lição” Plays de Gertrude Stein, em que a escritora americana relata o modo como se foi aproximando e afastando do teatro para finalmente chegar à escrita de peças-paisagem, que parecem não se esgotar, há três ou quatro passagens sobre o verbo “to know” que me divertem muito. Stein descreve um problema de infância com o teatro que expelia familiaridade equiparando conhecer e saber, e que a excluía e angustiava, mas eu lembrei-me do seu texto a propósito das pessoas que acham que quanto mais nos conhecem mais sabem sobre nós. E lembrei-me porque o verbo “to know”, em inglês, não muda consoante se fale de saber ou de conhecer, o que, por um lado, dificulta a tradução do texto de Gertrude Stein mas, por outro, ajuda-nos a reconhecer porque aproximamos conhecer de saber. E esta aproximação não se faz só com pessoas que encontramos, mas também com livros, espetáculos de teatro ou animais de outras espécies.
É verdade que nos causa irritação, em alguns casos, o facto de conhecermos pessoas que nos fogem. Delas dizemos com desconfiança ou desprezo que não se abrem, que se escondem, que gostam de ser misteriosas ou até que nos desiludem, tal como dizemos de certos livros ou espetáculos que são ilegíveis, indecifráveis ou difíceis. São casos de que habitualmente acabamos por nos afastar, virando as costas porque sentimos que nos viram as costas. Mimetizamos o que encontramos no outro e seguimos caminho em busca da compreensão e do saber. Isto porque queremos conviver com quem quer conviver, sabendo à partida o que significa conviver: saber quem tu és.
É por isso que, quando começamos a conhecer, fazemos perguntas: Como é que te chamas? Do que é que gostas? Quantos anos tens? Etc. As perguntas já sabem a resposta, na medida em que, se me perguntam quantos anos tenho, não responderei “José”. Da mesma forma, se pergunto ao livro o seu título, não espero que me responda quantas páginas tem e, se pergunto ao espetáculo quanto tempo demora, não estou à espera que me responda que é em tons verde e laranja. Como escreve Gertrude Stein, numa das referências ao tal verbo, na tal lição de que me lembrei: “in asking a question one is not answering but one is as one may say deciding about knowing”.
A pergunta é uma decisão sobre o saber, porque carrega consigo as possibilidades de resposta, porque transporta um conhecimento. Decidir o que queremos saber é a forma de conhecimento privilegiada e, pelo facto de o ser, ajuda-nos a distinguir entre as pessoas, os livros ou espetáculos que podemos conhecer e os que não podemos conhecer, ou seja, entre aqueles para quem temos perguntas e aqueles para quem não temos. Por isso, quando achamos que já sabemos tudo sobre certas pessoas (as que já conhecemos), não é porque de facto tenhamos obtido todas as respostas, mas sim porque deixámos de ter perguntas para lhes fazer. Tornámo-las finitas, desenhámos-lhes as fronteiras e imaginamo-las como variações das perguntas que lhes fizemos no passado e das respostas que fomos recebendo. Fechámos o círculo do conhecimento.
Não é raro conhecer gente assim, tal como não é raro conhecer espectadoras assim, espectadores que conhecem o mundo e que nos conhecem a nós. São pessoas que têm por hábito valorizar a emoção de se identificar “imenso”. É estranho o advérbio, mas não lhe demos demasiada importância, é claramente marca do enfático. Fiquemos apenas com esta emoção da identificação porque ela é da ordem do saber e do conhecimento.
Quando nos identificamos com o espetáculo, ficamos com a sensação de que o espetáculo nos conhece e isso conforta-nos e emociona-nos porque parece raro, na medida em que ainda agora conhecemos este espetáculo e ele já sabe tão bem quem somos. As pessoas que convivem com o teatro gostam de enfatizar estes encontros e chamam-lhe “a magia do teatro”, uma expressão da família do sinistro “bichinho do teatro”. Esta identificação não é exclusiva do teatro porque nada é exclusivo do teatro, mas as pessoas que convivem no teatro (e porque precisam dele para conviver) gostam de reclamar a exclusividade até como forma de evitar a extinção. No teatro vive-se imenso com a angústia da extinção.
A “magia do teatro” pretende sinalizar a excecionalidade, a raridade de tal encontro, quando na verdade, e podemos prová-lo empiricamente, a identificação com espetáculos não é de todo rara. Aliás, são os espetáculos mais consensuais que provocam mais identificações. Uso a palavra consensual aqui como em tempos Milan Kundera usou a palavra “kitsch” nesta definição que li citada pelo crítico de arte Hal Foster: “Kitsch faz com que duas lágrimas escorram em rápida sucessão. A primeira lágrima diz: É tão bonito ver crianças a correr na relva! E a segunda lágrima diz: É tão bom sentir-me emocionada, em conjunto com toda a humanidade, por ver crianças a correr na relva! É a segunda lágrima que faz do kitsch kitsch.” Ou seja, é o encontro com a “humanidade”, com o consenso generalista, que nos faz sentir parte de um todo e cair de joelhos admirando a magia, convencidos de que sabemos tudo, não porque saibamos de facto tudo sobre o espetáculo, mas porque as perguntas que fomos capazes de colocar chegaram ao fim, como um ano ou um filme chega ao fim: “The End”.
Chegar ao fim (e ao princípio) é talvez a mais poderosa magia que o consenso nos oferece. O “identifico-me imenso” confirma que atingimos a meta, concluímos o círculo, e que as nossas lágrimas podem escorrer em sucessão como se tivéssemos morrido e ao mesmo tempo assistíssemos, com toda a humanidade, à nossa morte. Ver o mundo a chorar por nós emociona-nos, tal como nos emocionamos a ver um espetáculo que conhece todas as nossas perguntas. Fomos capazes de capturá-lo e cedemos a um abraço de compreensão mútua que atribuímos à generosidade alheia. Destes espetáculos dizemos com intensidade enfática que nos iluminam ou que a sua simplicidade é deslumbrante. Coisas assim. Até porque, como se sabe no teatro e nas artes em geral, é muito complicado ser simples.
(Este parágrafo sou eu a reagir com um suspiro.)
Na tal “lição”, Gertrude Stein também diz que “knowledge is what you know”. Poderíamos lê-la como exemplo de simplicidade deslumbrante e identificarmo-nos imenso. Prefiro, porém, seguindo o princípio de que quanto mais conhecemos menos sabemos, procurar um outro caminho. Porque não só não sei como traduzir a frase como creio que ela aponta para tudo o que o saber desconhece, esse infinito cósmico que está para lá da morte e da vida, do fim e do princípio, da familiaridade e da identificação e das perguntas. A frase de Stein reduz a ideia de conhecimento a um mundo tão pequeno e limitado (“what you know”), que parece mesmo estar a expor a sua insuficiência indicando que o conhecimento é a permanente insatisfação com o saber.
Para a ignorância não há pergunta que nos valha. Quando mais a conhecemos menos sabemos e, neste caso, diria que fazemos com o verbo “to know” o que Gertrude Stein sempre quis fazer mas não pôde porque a língua não deixou: separamos momentaneamente uma coisa de outra (“to know” e “to know”), mesmo que saibamos que estamos a dizer a mesma coisa, ou seja, que conhecer é ignorar.
A verdade é que, por muito que custe ao consenso, com uma palavra apenas se escrevem muitas outras. E é por isso que certos espetáculos não acabam, não têm história ou não ficam na memória. São os que se mantêm para sempre desconhecidos, que escapam às perguntas com que ordenamos o mundo. Nunca se fazem e, tal como um ano que acaba, estão sempre a começar.
Bom ano.