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Gravidade, zero

 

Em dezembro de 1999, o encenador Dragan Zivadinov estreia Gravitation Zero – Noordung Biomechanics Theatre, um espetáculo do coletivo esloveno de artistas multidisciplinares Neue Slowenische Kunst (NSK), apresentado, no ar, numa nave de treino russa pertencente ao Centro de Treino de Cosmonautas Yuri Gagarin situado na Cidade das Estrelas, a nordeste de Moscovo. Um voo com 8 espectadores e 7 atores que executam, num ambiente de gravidade zero alcançado em voos parabólicos, movimentos do sistema de treinos do ator, encenador e teórico russo Vsevolod Meyerhold (1874-1940). Biomecânica, nome por que ficou conhecido este regime de preparação de atores, traduzia, tanto quanto se sabe dos registos que ficaram, uma vontade de racionalização e controlo absoluto do movimento do corpo, comparando a gestualidade do intérprete à de um operário fabril. As ações deveriam ser precisas, limpas e atléticas, de modo a cumprir claramente os objetivos, numa lógica de produtividade e eficácia que rompesse com o método de Stanislavski, mais próximo de um teatro psicológico de lógica representativa.

Executar esta técnica em microgravidade é não só uma impossibilidade como uma afronta aos próprios princípios da biomecânica meyerholdiana. A biomecânica reclamava o peso, precisa de chão e de saber para onde vai, prosseguindo a sua finalidade com o mínimo de imprevistos. Sem gravidade deixa de ser possível dominar os corpos com precisão, perde-se o controlo, desconhecemos o destino. É grave, diria Meyerhold. Já Michael Benson, que assistia a esse espetáculo cósmico de câmara em punho, deixou anotado: “Como escrever a ausência de peso? É impossível.” 

A afirmação pressupõe na presença do peso uma condição para a escrita. Não se escreve a ausência do peso porque a escrita carrega um fardo, tem gramática, tem história. Mas a impossibilidade da descrição percebe-se quando lemos este relato na íntegra, não resulta em silêncio. Michael Benson escreve a ausência de peso, mas tem de lidar com a perda de orientação. Uma escrita sem peso será uma outra escrita mas ainda uma escrita. A falta de peso desfaz, por exemplo, as antinomias: “O que estava em cima fica agora uma coisa que está ‘para ali’ [over there]”. O que estava em baixo passa a ser o lugar onde antes estivemos.” Ou seja, perderam-se as referências binárias que dizem o que está à esquerda e o que está à direita, o que é certo e o que é errado. Estará o copo cheio ou vazio? Ainda assim, a perda não emudece, apenas se aproxima do impossível.

Uma réplica deste espetáculo, apesar de executada em circunstâncias diferentes, ocorreu em 2022, mais de vinte anos mais tarde, quando o empresário português Mário Ferreira viajou no foguetão da empresa de turismo espacial americana Blue Origin de Jeff Bezos. A viagem, que começou no Texas, em Corn Ranch (Rancho do Milho e já não Cidade das Estrelas – perdeu-se a poesia topográfica),  durou cerca de 11 minutos e Mário Ferreira e os outros 5 passageiros experimentaram a gravidade zero durante 3 desses minutos. Uma viagem em que os intérpretes pagam o elevado custo do bilhete de espectador e, ao contrário do teatro cósmico dos NSK, atravessam mesmo a barreira dos 100 km de distância do solo planetário, o que lhes permitiu prolongar a sua experiência de microgravidade, por contraste com os breves voos parabólicos dos outros turistas da ausência de peso. O espetáculo de Mário Ferreira e companheiros na cápsula ficou registado num breve vídeo de cerca de 1 minuto onde se ouvem gritos eufóricos, uma voz que exclama “Inacreditável”, uma outra que pergunta, “Estou a olhar na direção certa?” e uma ainda que descreve, “Estou a girar!”, enquanto corpos vestidos de azul volteiam numa dança improvisada. Ao fundo, um dos passageiros, presume-se que pela idade avançada, não teve autorização para desapertar o cinto e experimenta a ausência de peso levantando somente o braço esquerdo enquanto olha nostalgicamente pela janela o perfil do planeta Terra. Umas voltas mais, cambalhotas, um adeus para a câmara e “Uuuuh!”, gargalhadas soltas e um dá-cá-mais-cinco. O espetáculo cósmico é breve e caótico e estúpido. Mas a sua estupidez não deve ser apontada sem justificação. 

O teatro cósmico dos NSK desafia Meyerhold. No entanto, o desafio não é mera afronta porque ao fazê-lo o espetáculo caminha para a sua impossibilidade. Existe um certo cinismo na vontade de fazer o impossível. O filósofo contemporâneo francês Geoffroy de Lagasnière, num pequeno livro intitulado A arte impossível, associa a impossibilidade ao cinismo e por sua vez o cinismo à incoerência lógica: “Não procurem a coerência lógica, mas a coerência tática, sejam estratégicos, sejam cínicos”. É este o seu conselho a quem se debate, no campo da arte ou da estética, com princípios éticos e a vergonha de fazer, por exemplo, literatura e não medicina. Gravitation Zero – Noordung Biomechanics Theatre habita a incoerência lógica ao mesmo tempo que dá a sua mão tosca e inconsistente à biomecânica meyerholdiana. É aliás esse o chão que faz a inteligência deste espetáculo cósmico: sem Meyerhold e a sua biomecânica, o teatro de NSK seria semelhante ao de Mário Ferreira, limitando-se à sofreguidão de ser “o primeiro a” – “o primeiro espetáculo de teatro em gravidade zero” e o “primeiro português no espaço”. E no entanto, apoiando-se no teatro que não vai fazer (será impossível),  Dragan Zivadinov alimenta a estratégia cínica que responde ou se desvia do estado das coisas e do fardo de uma certa história do teatro, do lugar onde só se vive com peso e com dualismos e antinomias, obrigando Michael Benson a procurar outra forma de escrever. É neste “over there” que Benson declara que o que estava em baixo passa a ser o lugar onde antes estivemos. 

O teatro cósmico de Dragan Zivadinov e dos NSK faz-se com o impossível. Segundo Benson, no mesmo texto, Zivadinov gosta de falar de Meyerhold e de outros encenadores do século XX que tentaram quebrar as barreiras erigidas por formas teatrais tradicionais. Gravitation Zero…, escreve, consegue pegar nas “experiências e ideias, sintetizá-las, refletir sobre elas, readaptá-las e fazer uma arte tão radical que ilumina o caminho de um futuro que não imaginávamos possível até o seu trabalho ter surgido para o iluminar.” Ao iluminar o impossível Zivadinov imagina a possibilidade do impossível mas não elimina ou resolve a impossibilidade. Gravitation Zero… faz o impossível, é essa a sua possibilidade que apenas é possível porque, numa lógica que não é já binária, impossível e possível não se eliminam ou antagonizam, mas convivem na leveza do cosmos.

Já as declarações do espectador e intérprete Mário Ferreira, em entrevista à CNN Portugal, depois de aterrar em segurança e de volta ao seu país natal, começam por destacar a fotografia que tirou em gravidade zero com uma bandeira de Portugal que mandou fazer “para poder caber no bolso” (“bordada à mão”). Mas, mais que tudo, Mário Ferreira realça “a grande admiração” que foi ver que “o céu não era azul mas totalmente negro”. A afirmação confirma a incapacidade de imaginar a possibilidade do impossível ou de passear por outra lógica. Por isso, quando giram, estes intérpretes apenas são capazes de dizer “Estou a girar”. A literalidade é o peso da sua possibilidade e da sua escrita. A gravidade zero, para estes tripulantes de Blue Origin, nunca será atingida porque para eles nada é impossível. E é essa a sua estupidez.

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