“Não escrevas sobre actualidades”, tinha-me pedido o Vasco[1], e eu descansei-o, porque nunca tenho opinião formada assim de um dia para o outro. “Se estiveres com bloqueio, podes sempre escrever sobre livros”, o que não me descansou nada, porque há maternidades que não leio. Mas tinha preparado um texto sério, sobre ciência e arte, para ser o meu primeiro aqui na Almanaque, a sério que tinha. Depois pensei em dizer ao Vasco que afinal não ia dar, que sei eu sobre escrever, sobre ciência ou sobre arte? O prazo chegou, passou, e não enviei nada. Tornar público algo interior exige demasiada coragem, principalmente para quem não gosta de se mostrar. Porque haverá alguém de sujeitar-se a exposição e escrutínio, desnecessariamente? Ainda para mais, para sempre?
Acontece que primeiro morreu a Paula Rego e logo a seguir a Ana Luísa Amaral e assim fica difícil viver com as nossas cobardias. Então, este texto quase todo copiado, é sobre coragem e sobre a força da vida interior, “mesmo que às vezes não pareça, mesmo que te digam que não”.
Uma pequena virtude que aprendi tarde na vida foi a discordar sem achar que estava a ser arrogante ou mal-educada. E uma das primeiras vezes que me lembro de ter lido algo de alguém especialista e de não ter concordado nada, foi por causa da Paula Rego. Há muitos anos vi a sua exposição em Serralves e achei tudo horrível e maravilhoso ao mesmo tempo, e comecei a ler o que se escrevia sobre ela e como ela se declarava cheia de medos, mas pintava coragem, ou assim me queria parecer. Li que, numa das litografias da série Jane Eyre, Paula Rego representa a órfã Jane, Mr. Brocklehurst e Bessie, alterando-lhes o tamanho e proporções, para simbolizar diferenças de poder. Segundo Marina Warner, num texto para a Tate, em 2003[2]: “Rego reproduces the psychological drama in the book through distortions of scale, cruel expressiveness of gesture, and disturbingly stark contrasts of light and welling shadows. The long, lugubrious, moralising face of Mr. Brocklehurst in The Inspection looms as large as the little girl’s whole upper body and twice its bulk[3]”. E continua: “Jane standing on the stool, held by Bessie, becomes a tiny, breakable poppet[4].” Não posso reproduzir a imagem (é fácil de encontrar na internet) mas, silenciosamente, não concordei. Os meus olhos de leiga não conseguiram e não conseguem encontrar fraqueza na pequenez de Jane: pode não ter poder, mas não está em causa a sua liberdade. Pelo contrário, a sua posição parece-me de força, só que é uma força enorme e interna. Voltei a pensar nisto quando Paula Rego morreu, porque a Ana Gabriela Macedo descreveu a mesma imagem no Jornal de Letras mas viu a “minúscula Jane” e a sua “coragem indómita [como] rejeição do medo e da vitimização” como “desafiando a autoridade inquisitorial do director do orfanato, rosto lívido de poder, igual a todos os outros que representam o poder e a autoridade”[5]. O desequilíbrio de poder está lá, o desafio de Jane também, e senti-me mais forte, apesar de continuar pequena. Muito grata à Paula Rego.
Mas como se ensina (ou se aprende) a coragem? A Ana Luísa Amaral, como tantos outros escritores, entrou na minha vida graças à minha Mãe, que a conhecia, lia e escutava. Os meus filhos têm livros autografados, oferecidos pela Avó, que ficou na fila da Feira, Feira essa que este ano lhe foi dedicada.
Numa entrevista dada em 2011 a Anabela Mota Ribeiro[6], Ana Luísa Amaral contou como acabou por fazer a sua tese sobre Emily Dickinson porque leu o verso: “Quando sob uma dor titânica, as feições ficam no seu lugar”[7]. É de facto um verso incrível. Percebo que é sobre a tensão entre ser e parecer mas, livre dos espartilhos do século XIX, agrada-me a ideia de escolha e, como na outra Jane, imagino uma enorme vida interior, cheia de tudo, e uma força igualmente forte que só deixa transbordar se assim o decidir. Uma espécie de antídoto contra a pressão new age de se parecer o que se é e de se ser o que se parece. Como se “ser genuíno” quisesse dizer não ser capaz de, sob uma dor ou força Titânicas, as feições ficarem no lugar. E depois, continua a falar sobre a sua descoberta do feminismo e sobre o não saber, ou não querer, estar calada. Termina a entrevista dizendo: “É sempre um risco tudo aquilo que fazemos.”
“Escuto” da Sophia:
(…)
Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco.
Caminhar com solenidade e risco. A Ana Luísa Amaral não perdia uma oportunidade para falar sobre bondade e sobre a filha. No seu poema “Testamento” dá conselhos de educação a um possível tutor, caso ela morra, e está cheio de Pequenas Virtudes, como trocar batatas por fantasia e amor. A filha Rita, tornada musa, lembra-me outras filhas, a Ana e a Sara do Manuel António Pina, que também estavam sempre a aparecer nas histórias e nas poesias. O Manuel António Pina escrevia muito sobre a coragem de se ser forte com os fortes, mas copio em baixo um poema pouco político porque me transmite a mesma imagem de vida interior e porque revela esse olhar de amor e reconhecimento que me parece dar espaço ao risco. Em versão completa para não ser chamada de feminista radical (que por acaso até sou).
Poema à Ana no dia do Anaversário
Havia uma flor!
Nem eu sabia
onde é que a flor havia,
Mas tanto fazia.
Talvez houvesse
onde ninguém soubesse
ou fosse uma flor de estar a haver
só na minha imaginação,
ou não fosse uma flor, fosse uma canção.
Nem a flor sabia
que existia.
Em qualquer sítio, sem saber, floria.
E se fosse uma canção cantava e não se ouvia.
E isso acontecia
no meu coração.
Não sei se era uma flor se uma melodia,
era qualquer coisa que havia
e cantava e floria
dentro de mim sem razão.
Ia pela rua e ninguém diria.
As pessoas passavam
e eu dizia:
«Bom dia!»
e ninguém suspeitava
o bom dia que fazia
em qualquer sítio
que dentro de mim havia!
Só eu sabia e sorria,
levando-te pela mão.
“Então mas não ias escrever sobre ciência? Sobre infinito, conjecturas e certezas?” (o meu superego armado em Vasco). Primeiro, avançar com solenidade e risco é o conselho que daria aos meus alunos, se desse aulas, porque é assim que vejo o acto de fazer ciência. Segundo, há lógicas que se explicam melhor sem conjunções nem disjunções. Terceiro, é preciso ganhar coragem. Muito grata à Ana Luísa Amaral.
Silogismos
A minha filha perguntou-me
o que era para a vida inteira
e eu disse-lhe que era para sempre.
Naturalmente, menti,
mas também os conceitos de infinito
são diferentes: é que ela perguntou depois
o que era para sempre
e eu não podia falar-lhe em universos
paralelos, em conjunções e disjunções
de espaço e tempo,
nem sequer em morte.
A vida inteira é até morrer,
mas eu sabia ser inevitável a questão
seguinte: o que é morrer?
Por isso respondi que para sempre
era assim largo, abri muito os braços,
distraí-a com o jogo que ficara a meio.
(No fim do jogo todo,
disse-me que amanhã
queria estar comigo para a vida inteira)
____
[1] Vasco M. Barreto, um dos fundadores da Almanaque.
[2]Marina Warner, ‘An artist’s dream world: Paula Rego’, Tate Research Publication, 2003, https://www.tate.org.uk/art/artists/paula-rego-1823/artists-dream-world
[3] “Rego reproduz o drama psicológico do livro através de distorções de escala, expressividade cruel de gestos e contrastes perturbadoramente marcados de luz e sombras. O rosto comprido, lúgubre e moralizador do Sr. Brocklehurst, em A Inspeção, é tão grande quanto a parte superior do corpo da menina e tem o dobro do seu volume.” Tradução da autora.
[4] “Jane de pé, no banco, segurada por Bessie, torna-se numa boneca minúscula e quebrável”. Tradução da autora.
[5] Ana Gabriel Macedo, “Génio, Coragem e Generosidade”, Jornal de Letras, 15 de Junho de 2022
[6] Entrevista de Anabela Mota Ribeiro a Ana Luísa Amaral, publicada pela primeira vez no Público em 2011 e disponível aqui: https://anabelamotaribeiro.pt/ana-luisa-amaral-85784
[7] “When upon a pain Titanic/ Features keep their place”