Não gosto de auto-ficção. Irrita-me a manipulação descarada, ter de pesar demasiadas coisas em conflito. Até assumo que dê jeito que alguém se ofereça à radiografia, que se alcance uma aparente versão destilada da experiência humana. Quem nunca olhou para outro a querer ler o que tinha dentro que atire uma pedra. Eu, se o fizesse sempre, teria de começar um tiroteio de calhaus. O problema é nunca poder desligar-me do x-acto que limita o raio-x.
Elogiada por uns, moda no Brasil, a auto-ficção depressa nos prova que quem se lhe dedica encontra uma fórmula e a seca. A literatura faz-se coisa pouca, esvaziando-se enquanto espaço que dá o que mais nada pode dar, e transforma-se na passerelle de um ego. Ao assumir a forma ensaiada e repetida, lá se vai o espaço para o abalo. A peça literária não olha para fora, não atinge o olhar crítico e, em vez de criar pontes, manda-as abaixo. Ao expor a intimidade, o romance auto-ficcional torna-se em apenas extimidade. A estratégia narrativa seca ao ponto de ser um jogo de tabuleiro, servindo para confundir o eu escritor com o eu personagem e para mesurar a credulidade do leitor.
Como o autor se foca em si, tudo o que está à volta perde importância: o jogo de leitura torna-se na tentativa de destrinçar a verdade da invenção. No âmago de tudo isto, está a literatura pensada como lugar autónomo e como veículo de desdobramento. O resultado é redutor: o impulso auto-biográfico pouco mais fará do que confinar o espaço das potencialidades da literatura. A incorporação do material biográfico torna híbridas as fronteiras entre o real e o ficcional e o centro da atenção passa a ser intra-literário: os olhos estão postos no autor, não como agente que controla a narrativa, que a decide, que a doseia, mas como elemento que a usa para levar adiante uma imagem de si. Desta forma, resta-nos pouco: uma literatura que se vê ao espelho, girando em torno da figura propulsora.
Sempre houve aspectos das vidas dos autores a funcionar como matéria do texto ficcional, mas a auto-ficção traz uma novidade importante: a vontade consciente de manipular identidades autorais. O autor torna-se numa peça fulcral dentro da obra: ainda que externo ao texto, ele mesmo é um elemento do texto, construído, forjado, maquilhado e, muito provavelmente, ficcionalizado. Ao leitor, impõe-se a pergunta cuja resposta norteará a leitura e a análise da obra: parte-se para uma ficção ou para uma auto-biografia? O problema é que, quando se entra no jogo do hibridismo, as outras preocupações tendem a cair ao chão. Invariavelmente, perde-se a capacidade de depurar o essencial, não sendo possível vê-lo a partir de fora e sob múltiplos prismas. Apenas um olhar é dado, vem tudo manco à partida. Com isto, perde-se uma parte importante do nexo narrativo, que vem implicar a perda de unidade e totalidade. O olho clínico que ajuda a seleccionar está focado em mostrar-se apenas. É fácil cair na ilusão de que nada parece mais verdadeiro do que alguém que se mostra a nu – não despido de roupa, mas de honra ou dignidade. E é difícil julgar que nos mentem quando vertem a dor, as expectativas frustradas, os falhanços.
No caso de Knausgård, metade da leitura implica sentir vergonha alheia. Ainda assim, a auto-ficção é incapaz de extrapolar essa experiência humana individual, voltando-se em demasia para o eu que escreve, sem olhos de fora. E, ao fixar-se mais na individualidade do que na universalidade, transforma o leitor num psicólogo. Já autores como Manuel Vilas, por exemplo, escrevem romances que não passam de chorrilhos de mágoas e tristezas, prosas que são dores ruminadas, transformando a literatura em depósito de nostalgias. Ao lermos Em tudo havia beleza, vemos que o autor está viciado em si e que quem só tem visão para dentro não consegue ver de fora. Enquanto a literatura se transforma em palco de vaidades ou em psicanálise, o romance transforma-se em palco do eu. A fasquia de calibrar uma acção ou montar estrategicamente uma narrativa também fica rente ao chão. E, como se não bastasse, não se percebe bem como se funda a relação dialógica, já que ao leitor só cabe ouvir.
O tom confessional também muda as regras do jogo, e de repente é claro – até tosco – que estamos perante um jogo. Quando os autores confessam imoralidades, vê-se em pleno a confissão, ficando descarada a procura da redenção. A interpretação morre na praia, já que ao leitor resta apenas um caminho: acreditar ou não. O autor despeja a vida, talvez crente na peculiaridade da sua condição ou, pelo contrário, crente na sublimação da sua banalidade. De seguida, o leitor esventra a intimidade, fecha o livro e o mundo fica estático. Da sua parte, só pode dar indiferença ou compaixão.