Ia escrever que o primeiro pedaço de Brasil que vi foi (pela janelinha de um avião que não descontinuava a carreira de arranha-céus) o céu de São Paulo – mas é mentira. Não foi nas vizinhanças do Frei Caneca, suores frios no corpo e o meu desprezo pelos avisos de um amigo, que aquele bairro era perigoso, que me mudasse para zona menos off da cidade (que off!, foi amores à primeira vista), como se São Paulo, a que não tem centros, a que toda é centro, tivesse ons e offs, de si mesma foras ou dentros. Não. O primeiro pedaço de Brasil que vi deve ter sido ali por alturas de Ana Cristina César, de Machado de Assis, ou de Caio Fernando Abreu, sem tempos, sem data. Foi por aí – através de Araraquara.
Quando os mapas se abrem, nascem as estradas: dormitava no remanso banco de um ônibus da Viação Cometa, em direção à cidade de São Carlos, quando, distraído, passou pelos meus olhos o relance de uma placa toponímica, A-ra-ra-qua-ra. Porque dormitava, o despertar foi como um “não”: o que vira não poderia ser aquele nome, aquela sequência de letras que, para mim, até ali, tinha sido a chave reluzente com que Jorge de Sena encerrava, nas suas Metamorfoses, a “Mesquita de Córdova”: “Araraquara, 7-8/1/1963”. Nem os inúmeros “Lisboa, tantos do tanto”, na mesma coleção, me apagavam no pensamento a aura “vazia e mítica” em que ignorava; “Araraquara” era igual a “Abracadabra”, mas ao contrário. Foi só quando me confrontei com a palavra escrita a designar um lugar (que não visitaria senão daí a alguns anos) que aquele ritmo de A, adentrado pelo meu olhar de soslaio, me enraizou toda num país, numa língua, numa poesia. Abreu, César, Assis, Sant’Anna, de Campos, tantas linhas, tanta estrada, só surgiram – só se consubstanciaram – de dentro do conforto do meu assento com suporte para os pés.
Na verdade, finjo de novo – foi no cinema: Amarelo Manga, foi – que vi na Califórnia o céu do Brasil. Foi no Dunga de Matheus Nachtergaele, o ar era pernambucano, ocre as paredes da periferia de Recife, que repercebi o lugar onde estava, o azul que o meu olfato penetrava. Lembrando o Lawrence Ferlinghetti de “Reading Yeats” (“Reading Yeats I do not think / of Ireland / but of midsummer New York / and of myself back then / reading that copy I found / on the Thirdavenue El /…”), é Ana Cristina César que limpidamente descreve essas deflexões:
lendo Ferlinghetti não penso
em Nova Iorque no verão
mas nos cheiros de pessoas que não suspeitam
que tem cheiros
e em mim de volta
tentando decifrar saudades,
ficções do Humaitá
lendo Ferlinghetti não penso
nos amantes cobertos pela árvore
resistindo e rasgando-se de novo
penso sim
(Penso, pois, sim, sim: em viagens, em espaço aberto fora das estantes onde já os livros de poemas não me cabem e de onde terei de os vazar.)
Penso, pois, sim, numa praia algarvia; dentro dela, sobre a areia, o olhar de Ana Cristina – Joaquim, não César, ô mulheres com sobrenome de homem, gente em cujas palavras se dilui o género, os géneros se diluem (“hello angels”). Joaquim é tão leitora quanto César, ainda que menos traduza de línguas diferentes (mas verte Helder entre a mesma e a mesma). Joaquim dando-me a ver olhos de Exún numa vitrine da Baixa da aldeia de Faro é a viagem poética, a transa-atlântica baldeando versos:
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utilizar assuntos vigentes
p/ instaurar o lixorama:
meu breve lance c oswald de andrade
vem d qndo ele dizia q o brasil é uma república federativa
cheia de árvores e gente dando adeus. depois todos morrem.
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O “lixorama” é o “vertedero de São Paulo”, Ana? “¿Cuántas copias de la Biblia Catalana Interconfesional / Hay enterradas / En el vertedero de São Paulo? … ¿Cuántas egagrópilas de buho…?”, pergunta Genís Segarra, dos catalães Astrud, na primeira canção que escutei, deitada na cama de um quarto da paulistana pensão Moncloa. (Ah, foi em Joaquim que vi pela primeira vez o céu do Brasil – na sacada de São Carlos, lembra, seus olhos grandes?)
Ana Cristina César trouxe para a língua poética do Brasil os versos de Ferlinghetti. Pode ter sido, então, lendo-a num livro de folhas cor-de-rosa, em casa, numa cidade do Sul de Portugal, que pela primeira vez vislumbrei o céu de um Rio de Janeiro nublado, outubro húmido com amantes dando a-deus, que as árvores iam cobrindo no passeio central da Humaitá, cruzando versos e asfalto debaixo dos pés.
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Ana Cristina César, antigos e soltos poemas e prosas da pasta rosa, organizado por Viviana Bosi, Instituto Moreira Salles, 2008, p. 159.
Ana Cristina Joaquim, WHATSAPP P/ BITCHES, Poesia Incompleta e Douda Correria, 2021.
Lawrence Ferlinghetti, These are My Rivers: New and Selected Poems, 1955-1993, New Directions, 1993, pp. 75-76.