Construído por um conjunto de entradas de diário, o conto «I Can’t Breathe» (1929), de Ring Lardner, descreve os dias que uma rapariga de dezoito anos passa numa estância de férias com os tios, idosos «com pelo menos 35 anos, talvez até mais», e onde se entretém a jogar golfe, durante o dia, e a dançar, à noite, no salão de baile animado por uma orquestra. Obrigada a viajar com os tios por os pais estarem uma temporada no estrangeiro, a narradora descreve o seu sofrimento por estar afastada de Walter, um rapaz de quem ficou noiva e com quem fez planos para casar em Dezembro. No espaço dos dez dias de Julho que perfazem as entradas do diário, esta rapariga apaixona-se e fica noiva de um rapaz, Frank, enquanto recebe cartas não só do seu noivo actual como também de outro rapaz, Gordon, que, regressado de uma viagem à volta do mundo, quer retomar a relação que tinham e o respectivo compromisso de casamento.
Outros noivos são mencionados, coisas passageiras, visto que agora, com Walter, é que é a sério. No entanto, à medida que vai pesando as qualidades e defeitos de cada um, vai percebendo que talvez a sua escolha não tenha sido acertada. A agonia de ter uma escolha para fazer e de não conseguir acabar com nenhuma das relações antigas provoca-lhe sentimentos profundos que a levam a afirmar, vezes sem conta, que «não consegue respirar». A resolução de todas as questões relacionadas com os vários noivados vai sendo adiada para um futuro incerto em que o contexto seja mais propício, não sendo certo qual possa vir a ser essa resolução.
A leviandade desta rapariga, e a forma violenta como cada um dos seus noivos assume o direito de posse sobre ela, serão facilmente transponíveis para contextos contemporâneos; a sua relação com a música também. Por exemplo, quando ouve a orquestra tocar «Always» (Irving Berlin), canção que tinha sido tocada no dia em que conheceu Walter, anota no diário: «Não consigo viver. Não consigo respirar.» Na mesma linha, uns dias depois, enquanto dançava com Frank, a banda toca «In a cottage small by a waterfall» (James F. Hanley) e a rapariga interrompe a dança para anunciar ao seu par: «Escuta, não aguento isto, não consigo respirar», explicando-lhe depois, perante o interrogatório do rapaz, que era essa a canção que estava a tocar quando se sentou numa mesa ao lado do actor Jack Barrymore. A emoção é idêntica para duas situações distintas: a relação emocional com um rapaz e a emoção de se cruzar com alguém famoso.
Há mais duas ocorrências em que a música tem um aspecto relevante. A primeira tem lugar logo no início do diário, quando a banda toca «Oh how I miss you tonight» (Benny Davis, Joe Burke e Mark Fisher). Na cabeça desta rapariga está ainda o seu noivo oficial, Walter, e a canção parece reflectir os sentimentos de ausência que diz sentir, como se a estivessem a tocar especialmente para ela, «embora a pessoa da canção esteja a falar das saudades que tem da mãe». A canção serve um propósito — o seu sofrimento — e, por isso, é possível abstrair-se do que nela se diz ou, pelo menos, adaptar a letra às suas circunstâncias.
Mais reveladora do que é a relação desta personagem com a música é um excerto da penúltima entrada do diário:
Escuta, diário, a banda está a tocar a «Limehouse blues». A primeira canção que dancei com o Merle Oliver, há dois anos. Não aguento. E que curioso que toquem uma antiguidade destas precisamente esta noite, quando passei o dia todo a pensar no Merle, e já não pensava nele há semanas e semanas. Onde andará ele, será que foi só uma coincidência ou significa que o vou ver outra vez. Não posso sequer pensar nisso ou morro.
A canção não recupera uma emoção mas, efectivamente, a memória de uma pessoa. Essa pessoa, no entanto, já estava na sua cabeça antes de a ouvir (i.e, já tinha pensado nela durante o dia, antes de ouvir a canção): repararia ela na canção se não tivesse já pensado no rapaz? Perante a coincidência de ter pensado num determinado rapaz e no mesmo dia ouvir a primeira canção que dançou com ele, introduz-se uma leitura projectiva ao intuir um eventual acontecimento futuro: talvez esta coincidência signifique que vão voltar a encontrar-se e, eventualmente, reactivar o noivado que ficara esquecido.
Há um historial de exemplos literários sobre personagens que mantêm relações parecidas com a arte e que são as caracterizadas por essa relação. A ideia de uma adolescente que tem sentimentos desmedidos ao ouvir canções de música popular é apelativa para quem mantém um discurso sobre a frivolidade deste género de música e, nesse sentido, o passo seguinte é fazer equivaler as qualidades superficiais da personagem às qualidades das canções. Contudo, neste conto, as canções não provocam as emoções. O que o conto de Lardner parece enfatizar é uma ideia sobre como certos acontecimentos podem ser organizados em função de actividades externas aos processos mentais: as canções apenas estruturam a maneira de pensar desta rapariga, não a formam. Lardner, que também foi letrista, não está a insinuar que as canções lhe moldam o carácter, pelo contrário, está a sugerir que é a nossa mente que molda as canções, que são, desse ponto de vista, meramente instrumentais: a distorção que a rapariga lhes introduz para que sirvam os seus propósitos indica precisamente que o que nelas se diz é irrelevante. Estas servem apenas como pontos de referência para a sua vida, ajudando-a a navegar pelas suas memórias.