Literatura4a

Simpatia Inacabada #1

CORRESPONDÊNCIAS

Num dia destes, num programa de música na rádio, perguntaram à cantora Adrianne Lenker, vocalista dos Big Thief, o que ouvia em criança. Fiquei à espera de que Lenker descrevesse as canções que ouvia nessa época, mas ela respondeu qualquer coisa como: ouvia os meus pais; o som dos insectos; a mobília que tínhamos em casa; os cantos mais pequenos e escuros da sala (queria saber o que se passava lá).

Pensei imediatamente no que responderia se me perguntassem o que lia em criança.

Eu lia os rótulos dos medicamentos; os títulos de O Comércio do Porto, que era o jornal que o meu avô todos os dias recebia na farmácia; os títulos dos volumes da editora Livros do Brasil que ele tinha trazido da Guiné e guardara, muito bem guardados, num armário envidraçado fechado à chave. Alguns desses livros nunca tinham sido lidos; era preciso abri-los com uma faca de papel. O meu avô tinha deixado ficar para trás muita coisa, mas isto tinha trazido.

Lia um missal que tínhamos em casa. Às vezes preparava leituras para a missa no domingo. Lia o catecismo e a Bíblia em banda desenhada. A segunda tinha histórias complicadas e ilustrações coloridas. Alguma vez tive fé? Não terá sido sempre uma questão de leitura?

Lia as lápides do cemitério. Naquele cemitério havia uma ou duas sepulturas de pessoas que tinham morrido em fins do século XIX. Estranhamente, diziam coisas parecidas com aquelas que as pessoas das últimas décadas do século XX gravavam na pedra.

Lia – de uma ponta à outra – as descrições dos livros e discos das revistas do Círculo de Leitores: todos os trimestres era preciso comprar alguma coisa e eu queria aconselhar o meu pai a fazer uma escolha adequada.

Lia o caderninho quadriculado de receitas da minha avó. Estava a desfazer-se e a letra era quase ilegível.

Lia os nomes dos barcos no mar quando íamos a Vila de Conde e à Póvoa. Chamavam-se Felicidade, Aurora, Benvinda – substantivos próprios que poderiam passar por substantivos comuns, alguns com erros ortográficos.

Lia as letras de canções que saíam nas revistas. Lia os horóscopos. Quando faltava às aulas, por estar doente, lia e relia episódios fora de ordem de uma estranha fotonovela numa revista antiga de que a minha mãe tinha guardado alguns números. Com algum espanto, percebi mais tarde que era uma adaptação de Wuthering Heights [1].

Folheava dicionários e enciclopédias em papel. Alimentava o sonho de um dia ler um dicionário do princípio até ao fim, mal sabendo que no futuro teria um emprego que me obrigaria a fazer, uma e outra vez, precisamente isso.

Na biblioteca itinerante da Gulbenkian, por volta dos onze anos, requisitei apaixonadamente os livros de uma série protagonizada por uma personagem chamada Brigitte, a ponto de um dia o bibliotecário da carrinha comentar com a minha mãe que “não eram livros para a minha idade” e que devia era ler Eça e Camilo. Infelizmente, até hoje não consegui recuperar o nome do autor ou autora dessa série. Se descobrisse, voltaria a ler a série inteira.

Lia livros sobre artes ocultas e os grandes mistérios da humanidade: tarô, magia branca, leitura da palma da mão, interpretação de sonhos, óvnis, os gigantes da ilha da Páscoa, os enigmas das pirâmides. Eram volumes com textos crípticos, de redacção duvidosa, com origem numa biblioteca que o meu pai tinha comprado a alguém que ia viver noutra parte do mundo. Em casa também tínhamos a obra completa de vários autores clássicos da literatura portuguesa, mas eu ainda não lia esses.

Quando fiz a licenciatura, tive de estudar os clássicos, claro. Gosto de muitos clássicos, mas não me interessam todos. Muitas vezes, prefiro livros considerados menores, obscuros ou pouco conhecidos, nem sempre fáceis de descrever e de arrumar em categorias. Quem escreve sobre esses livros?

Passamos grande parte do tempo a dizer as mesmas coisas sobre os mesmos livros e autores. Quanto mais se poderá escrever sobre Fernando Pessoa? Por outro lado, entre os títulos que mais dão que falar na nossa época, nunca sabemos bem quais vão sobreviver ao tempo. Se dissessem aos contemporâneos de Maria Judite de Carvalho que um dia sairia sobre ela um artigo numa revista literária americana prestigiada escrito por uma autora americana famosa, enquanto outros autores que na altura eram enaltecidos em Portugal seriam totalmente ignorados, quem acreditaria? Quando lemos a biografia de Thoreau, chega a ser penoso o facto de o autor, em vida, ter sido considerado um mero excêntrico e um fracasso como escritor. Ainda hoje, no entanto, falamos de Thoreau.

Alimentados por textos de “bons escritores”, aqueles programas que geram automaticamente textos literários produzem enunciados que só parecem convincentemente “humanos” por assentarem em tantos lugares-comuns e serem tão medianos. Ficamos surpreendidos quando pomos lado a lado um poema criado por um desses geradores de texto e outro de um escritor a sério. O texto do escritor a sério destaca-se sempre como mais desumano e extraterrestre. É possível que ler livros sobre óvnis em tenra idade seja afinal mais útil do que parece.

A resposta de Adrianne Lenker à pergunta que lhe fizeram na rádio surpreende porque ela situa a prática de ouvir imediatamente na vida. Também é assim que prefiro pensar na leitura – como uma actividade que faz parte do dia-a-dia, não enquanto obrigação que é preciso cumprir, justificar ou tornar mais sofisticada.

A questão é que estamos rodeados por textos desde que nascemos, e só depois de lermos enunciados muito diferentes percebemos quais podem ser importantes para nós. Além disso, sempre que mudamos, as nossas leituras mudam também. Os nossos gostos evoluem, regridem e transformam-se ao longo do tempo.

Houve uma época em que lia tanta poesia, que às vezes levava dois livros de poemas para ler no comboio, com medo de que o primeiro chegasse ao fim. Agora raramente consigo ler mais do que dois ou três poemas por dia. Nesses tempos, no entanto, aproveitava todas as viagens para ler, a ponto de um dia uma senhora que me avistou ao longe, estando a par dessas leituras, ter atravessado a rua só para me dizer que não devia ler tanto  porque ler “faz mal à cabeça”.

Anos depois, de facto, havia de sentir algumas vezes que a cabeça poderia não recuperar depois de ler o que tinha lido, e não só quando trabalhava em revisão de texto. Eis os casos em que dou razão aos adversários da leitura: quando as frases são incompreensíveis, mas parecem “bem escritas”; quando a gramática sofreu tantas violações subtis, ainda que de aparência criativa, que a língua se desintegra toda, arrastando consigo o mundo num turbilhão de preposições desorientadas, transitividades incompatíveis, próclises perdidas e duplas adjectivações inexplicáveis antes dos substantivos; quando os autores, sem ironia, fabricam pastiches grandiloquentes de maus escritores de séculos anteriores.

Em geral, no entanto, ler não “faz mal à cabeça”. O problema é que, nas terras pequenas, as pessoas se sentem na obrigação de fazerem advertências umas às outras, quando ler, na verdade, é mais como atravessarmos sozinhos florestas de símbolos que nos observam – com olhares íntimos ou familiares, mas também totalmente inesperados, às vezes.

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[1] Título original de O Monte dos Vendavais (1847), de Emily Brontë.

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