Ultimamente dou comigo a sentir uma saudade física da Bretanha. Dentro de mim algo se inquieta e foca numa imagem concreta, e de repente vejo-me nas escadas do meu prédio, ou na rue de Pontaniou em frente à casa cujo intercomunicador avariado cumprimentava todos os passantes, ou a entrar no supermercado. Não são as praias belíssimas, as ilhas e o perfil doce das rochas, o marisco, os enclos, os menires. Nestas pontes involuntárias para os sete meses de 2020 que passei naquela terra, estranhamente regresso sempre aos passeios permitidos ao prisioneiro no pátio da prisão: o quilómetro autorizado durante uma hora por dia. O meu quotidiano durante dez semanas.
Na altura não me importei muito. Acabada de chegar a Brest, o confinamento não impunha um corte nos meus hábitos, mas uma maneira diferente de preencher o caderno em branco que acabara de abrir. Num cenário novo, não sentia falta daquilo que ainda não vivera.
Só agora, quando o meu corpo insiste em invocar esses lugares comezinhos, me dou conta de que talvez tenha estado a gravar inadvertidamente com cinzel a aridez dos dias. Não no caderno em branco, mas no fundo de mim própria.
Resisto. Não deixarei que a minha âncora se instale naquele tempo fora do tempo.
E por isso começo um diário da Bretanha: com todas as cores, todas as ondas, todas as brisas, todas as surpresas.
O meu marido sonhava há anos com um ano sabático em Brest, mas eu opunha-me. Nem mesmo um semestre. Pensava em toda a vida cultural de Berlim que ia perder enquanto lá estivesse, argumentava “quem quer ir para a Bretanha se tem Portugal?”, dizia “Finistère! Isso é longe de tudo, é nas traseiras da aldeia do Astérix!”
Acabei por concordar, mas marquei a ida para depois da Berlinale de 2020. Lembro-me bem da quarta-feira do festival de cinema desse ano: foi quando apareceram nas casas de banho públicas os primeiros frascos de desinfectante. Estranhei a ausência da famosa gripe da Berlinale, que todos os anos bate com força por volta do quinto dia do festival. Ninguém tossia nas salas de cinema – excepto eu. Até me aperceber do silêncio dos outros, e lhes seguir o exemplo. O princípio da aprendizagem para os novos tempos que vinham ao nosso encontro.
No domingo de manhã entrei no avião com destino a Paris, onde o Joachim me foi buscar, e fizemos o resto do caminho de carro.
Ao entrar na Bretanha, começou a chover. Depois parou de chover, depois recomeçou. Depois abriu de novo. Como seria de esperar.
Nessa noite fomos jantar marisco ao porto de Brest. Marisco fresquíssimo, vinho branco Entre-deux-Mers. Apesar da chuva ininterrupta e do triste lar de estudantes onde estávamos alojados, a meio do segundo copo senti-me contente por estar ali, e comecei a sonhar vários meses de vida boa naquela região que desconhecia inteiramente.
Foi no dia 1 de Março de 2020.
Pensávamos que aquele estranho vírus de que já se falava tanto era algo que só aconteceria do outro lado do mundo, acreditávamos que iríamos escapar por entre os pingos da chuva, como já acontecera outras vezes.
Não sabíamos ainda, mas estávamos em contagem decrescente.