Há factos que hoje tomamos como certos, como sabermos que é a Terra que anda à volta do Sol, que as espécies têm evoluído ao longo do tempo e de acordo com os seus habitats, e que não há geração espontânea de vida. Sabemos também, sem qualquer sombra de dúvida, que só há um novo organismo porque havia um preexistente e não por um qualquer sopro miraculoso. Mas nem sempre foi assim.
Durante séculos, a maioria das pessoas aprendia o contrário do que acabo de apresentar como verdades incontestáveis. As restantes nem pensavam no assunto, mais ocupadas que estavam com a sobrevivência diária ou em amena contemplação despreocupada da natureza. Para que hoje eu, e qualquer um de vós, afirme com toda a certeza estes factos, muitas pessoas tiveram de incomodar uma data de gente para conseguir mudar ideias erradas com a chatice das provas experimentais.
Aprendemos na escola a famosa querela entre Pouchet e Pasteur, na qual um tentava demonstrar como era válida a teoria dominante da geração espontânea da vida, enquanto o outro estava determinado a provar que era um disparate que não passava no teste da prova experimental. Existe um bom motivo para reconhecer de imediato o nome do segundo e desconhecer o primeiro.
Desde a sua formulação por Aristóteles até ao século XIX, era tomada por válida a teoria da geração espontânea, que explicava como algumas formas de vida eram espontaneamente geradas a partir de matéria inanimada. Sem possibilidade de ver ou intuir a existência de um mundo microscópico, esta teoria mágica parecia fazer sentido de acordo com o senso comum. Se surgiam coisas, bolores, cheiros, sabores ou doenças onde antes aparentemente nada existia, parecia claro que a geração dessa vida só poderia ser explicada à conta de um sopro. Era uma verdade que se revelava autoevidente. Experimentem deixar um pedaço de comida na bancada da cozinha e vejam se não começam a aparecer, do nada!, novas formas de vida.
Houve algumas tentativas para demonstrar que essa teoria não podia estar certa, como as experiências de Spallanzani. Contudo, este foi acusado de ferver demasiado a solução que estava a estudar, destruindo assim a força vital que continha. Como é evidente, tratava-se de geração espontânea sim, mas que necessitava de um conceito muito concreto, o de “força vital”. Esta era suficiente para fazer brotar vida do vazio, mas era frágil e não resistia à fervura prolongada. Uma estranha forma de vitalidade, portanto. Spallanzani foi também acusado de ter selado o frasco fervido, o que não permitia arejar a tal força vital. Quem tira um bom arejamento à força vital, tira-lhe tudo.
Louis Pasteur era um indivíduo curioso. Circunspecto, dizia-se que nunca sorria. Nunca. E que era uma pessoa séria e ensimesmada. Vivia com a mulher e os vários filhos numa casinha em Paris, onde na entrada, à direita, ficava o seu laboratório; à esquerda o consultório e, ao fundo, a sala de estar. A casa ainda lá está em Paris, ao lado do que é hoje o Instituto Pasteur. Fui visitá-la na primeira vez que visitei a cidade e foi das experiências mais sensacionais que já vivi. Tudo por causa de um objeto.
Voltemos a 1860, ano em que a Academia de Ciências Francesa lançou um prémio que seria atribuído a quem revelasse novos conhecimentos sobre a teoria da geração espontânea. Pouchet, 60 anos, que tinha acabado de escrever um livro em que defendia com unhas e dentes a teoria, esfregou as mãos de contente. Estava no papo. Já Louis Pasteur, 37 anos, pretendia aproveitar a oportunidade para tentar, finalmente, deitar por terra o disparate de que a vida se poderia originar espontaneamente de coisa nenhuma. Pegou nas experiências de Spallanzani e, considerando todas as críticas que tinham sido feitas ao seu desenho experimental, foi melhorando gradualmente a metodologia até não restarem argumentos aos seus adversários. Foi uma luta que durou cinco anos, até sair finalmente vitorioso. É graças a ele que nos podemos hoje sentir inteligentes e sapientes, em comparação com as centenas de milhares de homens e mulheres que até 1865 acreditavam piamente que era possível que se originasse vida, como se houvesse um criador badalhoco à espera de que um fruto apodrecesse na taça para o brindar com uma asquerosa forma de vida. Estranhamente, o criador badalhoco não fazia rinocerontes ou alfaces, só minúsculas coisas que cheiravam mal e davam dores de barriga.
Então, o que fez Pasteur de brilhante? Como sucede com quase todas as ideias fora de série, algo tão simples que até enerva. O desafio era conseguir que não surgissem formas de vida numa espécie de sopa, uma água com coisas que a força vital parecia apreciar. Os detratores foram introduzindo condições: que não se podia ferver mais do que um certo tempo, sob pena de inutilizar a dita força vital, ou que não se poderia tapar completamente o ar, pois a vitalidade precisa de frescura. Ficou claro para Pasteur que teria de ser criativo para conseguir vencer o desafio. Com os tubos e balões, tampas e tampinhas que se usavam de forma corrente no laboratório, não se ia safar. Teria de desenhar novos contentores para o que veio a ser a sua vitória final.
A um balão de ensaio, juntou-lhe uma terminação peculiar, a que chamou “colo de cisne”, pelo comprimento e ondulação. A sua ideia era permitir que a dita força vital pudesse entrar se quisesse, dado que o contentor não seria fechado, mas obrigá-la a fazer um longo e sinuoso caminho, se quisesse mesmo lá entrar. Assim, ferveu o caldo durante o tempo considerado insuficiente para matar a força vital e deixou pousar o balão com o colo de cisne. Depois esperou. Esperou, esperaram e esperamos todos até ao dia de hoje. Nunca apareceu qualquer forma de vida nesse balão fervido e aberto à força vital toda que lá queira entrar. Esse caldo permanece estéril desde 1865 e continua ainda hoje em exposição no laboratório, o tal do lado direito da entrada numa pequena moradia de dois andares, em Paris, que foi em tempos a casa de Pasteur.
Quando entrei no que já me parecia ser um sítio de culto e deparei com esta preciosidade atrás de uma vitrine, foi impossível não ficar parada e comovida a contemplar aquele pequeno momento da história. Aquele contentor de vidro com líquido dentro, imaculado de formas de vida, era uma máquina do tempo. Uma ode ao conhecimento empírico. Uma homenagem a todos os que não se deixam vencer pelo senso comum e procuram as provas daquilo que até então parecia impossível. Aquele balão com colo de cisne era todo o engenho humano, a sagacidade, a capacidade de ver além do óbvio. Aquele balão era o que qualquer pessoa queria ser. Sublime, maior que o pensamento e a palavra. Mudar a vida das pessoas para melhor à escala planetária. Uma coisa não é só uma coisa.
A partir dos objetos, mais antigos ou mais modernos, mais bonitos ou mais feios, ou muito assim-assim, podemos perceber melhor como fomos ou porque somos. Mas os objetos não falam, não contam, precisam que o façamos por eles. É muito triste quando se perde a história de uma coisa, por já não haver quem a conte, pois ficamos apenas com um bonito bibelot cuja função prática ou caminho até ali chegar se perderam na voragem quotidiana do desinteresse pelo registo.
Alguns museus tentam entusiasmar-nos com legendas “Chávena. Século XVIII”, e eu fico a olhar para o que pode ser um objeto que fascina os meus olhos mas nenhuma das minhas perguntas fica satisfeita. Quem fez? Porquê? Quem usou? Para que serviu? Como veio parar aqui? Porque é que alguém achou que merecia estar em exposição numa vitrine e não encaixotada numa cave?
A beleza e a fruição estética de objetos têm muito valor em si mesmas, para além do seu significado. Mas poder acrescentar camadas à primeira leitura visual permite aceder a uma paleta de emoções que, de outra forma, não se poderiam conhecer, nem obter histórias que contribuem para o valor que atribuímos ao objeto – beleza, interesse, satisfação, bem-estar, entusiasmo. O banal pode tornar-se extraordinário, o trivial ser iluminado, e até o feio e desagradável se pode transformar em belo, assim que dedicamos tempo a conhecê-lo. Porque o essencial pode ser invisível, e apenas as palavras o podem revelar. E, de repente, aquela coisa deixa de ser apenas aquela coisa e é tudo o que representa e nos toca cá dentro. De uma porcaria, que seria lixo, se faz um objeto que tem de ser salvaguardado num museu para desfrute de todos.