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Weimar #3

POLÍCIA DA MORALIDADE – SALVAR A DEMOCRACIA – DIREITOS HUMANOS – OBSERVATÓRIO DO ÓDIO – PANTEÃO

 

POLÍCIA DA MORALIDADE 

O dia em que se extinguiu a Polícia da Moralidade foi um dia bonito. Na rua, homens de negro, em grupos pequenos, abandonavam as pistolas no chão, o chicote, vários estranhos instrumentos de tortura. Alguns Polícias da Moralidade, de tão contentes, rezavam baixinho, enganando-se de propósito no nome de Deus. À sua volta, as mulheres sorriam, dançavam, e soltavam o cabelo. Ouviam-se canções em inglês. Para surpresa de alguns, depois de abandonarem as armas e os uniformes, os Polícias da Moralidade continuaram a despir-se até ficarem completamente nus. Uma redenção, um engano, uma resposta ao calor que se fazia sentir? Ninguém sabia, ninguém se importou. Os cidadãos sabiam que, assim nus, os Polícias da Moralidade não lhes iam bater. Nem matar. Nem matar. 

 

SALVAR A DEMOCRACIA 

No jogo entre solteiros e casados, acontece sempre o mesmo. Há um momento em que os casados dizem que praticam futebol para Salvar a Democracia, e tudo muda. Os solteiros encolhem-se, uns juram que se casaram em segredo, outros que enviuvaram três vezes, também em segredo. Deixam de jogar e ajoelham-se do lado de fora da linha de jogo, jurando que Salvar a Democracia foi o que as mães lhes ensinaram, as mães e alguns pais. Os casados, entretanto, jogam o seu futebol antigo à vontade. O jogo termina com o resultado esperado: ganha a democracia, e ganham os casados, outra vez. E, no entanto, suspeita-se que na equipa dos casados  se tenham infiltrado vários solteiros, um ou outro viúvo e, pior ainda, um velho polígamo que vive maritalmente não com duas, mas com três amigas, em nome da democracia. 

 

DIREITOS HUMANOS 

O chefe abandonou o campo de jogo e dirigiu-se à sala dos jornalistas. Não estava suado, não estava cansado, estava contente. Então e os direitos humanos?, perguntaram os jornalistas. O chefe sorriu. Então e os direitos humanos? O chefe não disse nada. Então e os direitos humanos? O chefe sorriu e não disse nada, mas depois disse. 4 a 0. 

 

OBSERVATÓRIO DO ÓDIO 

Foi finalmente construído um Observatório do Ódio. É uma torre. Uma torre alta com uma varanda aberta sobre a cidade. Assim, de cima e de longe, é muito fácil observar o ódio. E os culpados. Todos os anos se acrescenta mais um andar ao Observatório do Ódio. Não são necessários binóculos. Apontamos os culpados a dedo, vemos o ódio com os dedos. É tão fácil que deixámos de reconhecer formas humanas. Cores, talvez, um ou outro movimento de corpos. Do nosso dedo depende a vida de alguns e a morte de muitos. Não pensamos nisso. Não reconhecemos caras ou corações. Apontamos de olhos fechados. Temos comichão nos dedos. 

 

PANTEÃO 

O Panteão estava já cheio de imortais e, no entanto, continuavam a nascer imortais, que é como quem diz, continuavam a morrer imortais. Um imortal que morre é mais um imortal a necessitar de Panteão. Determinou-se que se retirasse do Panteão um imortal por cada novo imortal que entrasse. Um por um, imortal por imortal, contas simples. A operação é delicadíssima, mas burocrática, os dois corpos a cruzarem-se, um com cerimónia, outro a caminho do cemitério. Os políticos, os vivos, hesitam entre ajoelhar-se e piscar o olho, as câmaras de televisão choram, como habitualmente, e a população mais curiosa, a que não vende tremoços, tenta decorar o nome do imortal homenageado, o mais recente. 

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