ALTARZINHO – MENTIRA – ANDAR A PÉ – ÓRGÃOS – TRABALHO DIGNO
ALTARZINHO
A ideia de um Altarzinho acabou por fazer o seu caminho. Agradava a todos. Longe iam os dias em que o altar era uma nave suspensa num palco imenso, longe iam as plataformas no céu, para sentar os dignitários políticos e espirituais, longe as cascatas povoadas por peixes vermelhos chegados do Japão, longe as bailarinas seminuas, sincronizadas e louras ao som de música de cabaret domesticada por um rancho folclórico. Saudades? Sim, saudades muitas, e das intraduzíveis. Afinal de contas não se muda de religião todos os dias, não se coloca assim a nossa vida nas mãos de um qualquer Deus omnipresente disposto a vir falar-nos ao ouvido à sombra de um Altarzinho.
MENTIRA
A palavra Mentira será proibida nos telejornais. É uma forma de homenagear os poderosos. Em vez de Mentira aconselha-se tirar ilações, rever a fita do tempo, iniciar uma análise informal do acontecido, avançar com um processo de reconstituição, não ter memória viva ou, mais simplesmente, estou aqui, na sequência de notícias vindas a público. Há já meninos apanhados a roubar a marmelada na cozinha que confessam à mãe estar a tirar ilações e a reconstituir a fita do tempo. As melhores mães, menos severas do que já foram, repreendem o menino: “Já te disse, meu filho, que é muito feio reconstituir a fita do tempo”.
ANDAR A PÉ
É oficial: as trotinetas e as bicicletas elétricas serão instrumentos do bem. Também se recomenda Andar a Pé, mas é mais cansativo. É oficial, está publicado, não haverá acidentes entre trotinetas e bicicletas e quem usar carro será chamado de populista e forçado a transportar um saco de batatas às costas, de joelhos, mas sem fé. Aquela antiga inclinação para usar capacete será desmascarada com dados fiáveis, de uma ciência nova. A cidade será chamada de verde ou azul, está por decidir. Quem ultrapassar o limite de velocidade tem de exibir a certidão que prova que está a salvar o planeta. A certidão é obtida online, e para os que não sabem inglês recomenda-se a loja do cidadão. Às sete da manhã a fila não é muito grande.
ÓRGÃOS
No futuro, as viagens aéreas dos poderosos incluirão obrigatoriamente o transporte de Órgãos. Os grandes empresários, os presidentes e os ministros, os religiosos importantes, serão acompanhados nas viagens intercontinentais por uma caixa de Órgãos doados por cidadãos anónimos, na hora da sua morte. É uma boa estratégia: os custos e o luxo e o conforto das viagens não serão postos em causa, não haverá escândalos pois, em caso de dúvida, o dignitário avançará sozinho pela pista do aeroporto, ao lusco-fusco, com a caixa de Órgãos na mão, explicando à imprensa presente “aqui está o coração do João e o rim do Serafim”.
TRABALHO DIGNO
Os trabalhadores serão chamados de trabalhadores, apenas isso, e será obrigatório chamá-los assim, trabalhadores e trabalhadoras. E haverá um horário do Trabalho Digno, das 8 às 9 da tarde, que não incluirá as viagens de autocarro nem os prazeres noturnos de ver televisão nos subúrbios. Nos fins de ano, será oferecida uma agenda do Trabalho Digno, encadernada, sem dias feriados a não ser o da crucificação. Às trabalhadoras e aos trabalhadores que estiverem tristes ou fizerem greve ser-lhes-ão lembrados a dignidade e o futuro que, mais uma vez, faltaram ao trabalho e, diz-se, são assalariados algures na Alemanha ou na Holanda e, diz-se, têm saudades dos pastéis de bacalhau.