Ilustração de Lia Ferreira

Weimar #8

CENTROS COMERCIAIS – ÉTICA DE DINOSSAURO – CORVOS NUM INCÊNDIO – POBRES – BOA MEMÓRIA

CENTROS COMERCIAIS

Alguns dias depois do Ano Novo, há um momento mágico e anónimo que acontece a meio da noite, longe dos olhos e da luz. É o desligar do presépio nos Centros Comerciais. Testemunhado talvez por um ou dois empregados de limpeza, esse é o instante em que a água seca no poço e os camelos dos reis deixam de dobrar o pescoço, os pastores pousam finalmente as ovelhas no chão e a luz, a luz por cima do senhor, a luz, a luz por cima do nosso senhor bebé se apaga definitivamente, para poupar energia e amar o planeta no escuro até ao ano que vem.

ÉTICA DE DINOSSAURO

O homem entrou na cidade com um milénio de ética atrás de si. Não era uma boa notícia, a ética era uma cauda, o rabo comprido de um animal extinto. O milénio de ética incomodava o trânsito, e apesar da boa vontade, era proibida de entrar nos transportes públicos. Um dia, num restaurante da moda, perguntaram-lhe: “E ela? O que é que toma?”  Era um insulto. A ética não come e não bebe, a ética não dorme. A ética ressona ao sol mesmo acordada. A ética é um animal doméstico para nos aumentar a autoestima. Na cama, a ética não faz milagres. Um dia o homem acordou sem ética e sem cauda e sem medo. Pensou que ia ser feliz. Mesmo sozinho, sem ética ia ser feliz como um dinossauro, para sempre.

CORVOS NUM INCÊNDIO

Metade do país desaparece num incêndio. O governo anuncia que “vai ficar melhor do que estava”. É um comunicado oficial, com fotografias. Metade do país, a metade não ardida, entusiasma-se. Um menino chamado Nero aprende a tocar lira. Os incendiários, os escondidos, os inspirados, saem a passeio. Os eucaliptos chiam de felicidade. As folhas secas no chão também. Os pássaros protegidos fogem em voo acelerado, clamando como corvos num poema, “vai ficar melhor, vai ficar melhor”. 

POBRES  

Para proteção da sociedade em geral, a psicologia experimental vai definir o que é um Pobre. Haverá financiamento, abundante, elétrodos na testa dos pobres, nos dedos e nos pénis. Os Pobres serão sujeitos a visões de bolos, pão fatiado, e automóveis vermelhos. Antigos programas de televisão, com muitos nus. E se os Pobres reagirem com uma mão estendida, sem salivar, sem imitar o movimento do volante, sem se distraírem da imobilidade do pénis, os cientistas exigirão mais eletricidade. Uma corrente nova, muito influente, advogará que a solução para entender a pobreza é mais ciência e mais eletricidade. 

BOA MEMÓRIA

Estava de costas nuas contra a parede e os olhos vendados quando se lembrou da acusação que o levara até ao pelotão de execução “a sua memória não é democrática “. Sentiu frio. Não sentiu medo. Ouviu os passos masculinos do pelotão de fuzilamento. As ordens do oficial de dia, gritadas. Pensou nos soldados como democratas, no oficial como democrata, quis acreditar nisso. Ordem para erguer as espingardas. As espingardas eram democratas. Ao ombro, apontar. Vinte olhos democratas, dez democratas abertos e dez democratas fechados. Três segundos, uma insuportável pausa democrata . Fogo! Fogo?, pensou. O grande fogo, o incêndio é democrata, mas estes eram pequenos fogos e as dez balas encaminham-se já para ele, para o furarem como um filho mau e o encostar à parede. As balas, são democratas? O seu voo, a sua pressa de linhas retas, de metal, democratas? Teriam memória, as balas? E aí estava ele, no instante em que as balas furavam o ar, e ele se perguntava: Democrata? Não democrata? Democrata? Haja memória, senhores!


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Ilustração de Lia Ferreira

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