MANUTENÇÃO – PRAZERES PROIBIDOS – SUPERMERCADO – INFLAÇÃO – BIBLIOTECA
MANUTENÇÃO
O único motor do navio não tinha Manutenção há dois mil anos. O navio metia água e os animais estavam inquietos, os que ainda tinham coragem para embarcar. Um par de passarinhos desanimava, vários casais de insetos e um de leões ensaiavam pequenos e grandes motins e um sargento da marinha vestiu umas botas para a chuva. O mais preocupante foi a recusa da fêmea elefante em embarcar, no exato instante em que o rinoceronte macho, já então com um chifre a menos, se despediu bruscamente da sua companheira. Pouco depois, percebia-se, o navio de um só motor, há milénios sem Manutenção, ia arriscar partir em viagem com centenas de animais solitários, um por espécie, dispostos a navegar naquela extrema inquietação de se saber perfeitamente incapazes de se reproduzir.
PRAZERES PROIBIDOS
Há um lugar onde as pequenas multidões ansiosas vão praticar os seus Prazeres Proibidos do fim do mundo. Não se trata do que pensam, estão todos vestidos e distraídos, nem sequer esperam o apocalipse. Há gente a colecionar selos de astronautas porque gosta de lhes lamber a cola com a língua, há avôs a colecionar bonecas de pano, gostam de cozinhar para elas, há raparigas que não gostam de gatos e passam o dia a rasgar as páginas escolhidas de enciclopédias veterinárias. Ninguém ali espera um fim. O lugar é calmo, a temperatura ambiente agradável, sem sinal de vulcões nem arrefecimentos espetaculares. A única alusão, mais ou menos triste, ao apocalipse é o elefante desenhado na parede do abrigo nuclear. O paquiderme exclama, “Não nos salvem! Assinado: os elefantes” e, mais abaixo, “Digam-me para onde vão os elefantes quando morrem, eu também quero ir.”
SUPERMERCADO
Nem sequer estava com fome nesse dia, mas apetecia-lhe. Democracia. Correu ao Supermercado. Procurou atrás das latas de Coca-Cola e nada. Para sua surpresa, também não encontrou a democracia atrás do leite-creme sem glúten, nem debaixo das alheiras vegetarianas. Pois, se era capaz de jurar! Perguntou à senhora da caixa. “Democracia hoje não temos. Não temos tido. Mas temos capitalismo.” Ele sabia que não era a mesma coisa. “Está junto das batatas biológicas, vem em sacos de 5 quilos.” Não era a mesma coisa. “Há clientes que estranham durante os primeiros dias, mas depois nem notam a diferença.” Com a sensação absoluta de que não era a mesma coisa, levou 5 quilos de capitalismo para casa.
INFLAÇÃO
O aumento generalizado dos preços não era um número nem uma estatística, era uma diminuição. O pão diminuía de tamanho, o inteiro e o fatiado, as frutas e os legumes diminuíam, os alimentos embalados eram cada vez mais pequeninos. Os produtos do capitalismo caminhavam aos poucos para a dimensão liliputiana dos insetos e das necessidades invisíveis, ditas espirituais. Os clientes dos supermercados curvavam-se em direção ao chão, usavam lentes de aumentar, pediam às crianças para lhes lerem a caligrafia pequenina. A escala humana encolhia. Os pobres foram os primeiros a habituar-se, olhavam as prateleiras e perguntavam-se o de sempre, em autocrítica; “então, meu pequenino, o que vais comer hoje?”
BIBLIOTECA
A Biblioteca do futuro recolherá da cidadania livros selecionados. O público apenas terá a obrigação de entregar os livros com aquelas palavras escolhidas apropriadamente riscadas à mão. A expressão “cala-te” e as palavras “pai” e “gordo” e “frio” estão entre as proibidas. “Castanho”, também, a palavra “castanho” será substituída por “queimado pelo sol”, por respeito ao sol e às queimaduras. Cada um dos livros, depois de convenientemente expurgado das suas piores palavras, será depois armazenado num lugar frio e seco, e nunca mais será lido. Os leitores que assim entreguem os seus livros às autoridades serão recompensados com umas lentes azuis e uma cabeleira loira, os sinais oficiais da virtude. Em troca, se aplicável, destruirão à frente de todos, e aos pontapés, os seus óculos de leitura.