Schubert

Simpatia inacabada #6

A História Interminável

 

Nunca fui muito boa a escrever conclusões. Várias pessoas me disseram isto, no tempo em que tive professores. Por isso, nas respostas do Chat GPT encontro um traço distintivo que me parece invejável: uma estrutura com princípio, meio e fim. Como em muitos textos assim tripartidos, mesmo quando escritos por seres humanos, cada uma destas partes repete a mesma informação, mas com uma perspectiva ligeiramente diferente. É uma forma de simplificação que, em alguns contextos humanos, é cultivada por uma questão de clareza: convém destacar bem a informação que se pretende transmitir, sobretudo quando determinados leitores podem tomar decisões sobre financiamentos de projectos. Mesmo nestes contextos, no entanto, não é raro que a introdução seja redigida no fim, ou que a conclusão e o desenvolvimento sejam esboçados no início. O pensamento e a compreensão humana não são lineares e progridem por avanços e recuos, ao contrário dos textos do Chat GPT.

Em artigos de jornal, como leitora, passo muitas vezes por cima da introdução, quando tenho a sensação de que o autor se limita a aclarar a voz ou a chamar a atenção para as lições de moral a retirar do que virá a seguir, quiçá por receio de que o que tem a dizer sobre o assunto não seja suficientemente interessante.

Noutras ocasiões, talvez fosse preferível começar pelo fim. As introduções são particularmente exasperantes quando, depois de fazermos uma pergunta sobre determinado tema que nos preocupa (por exemplo, o estado de saúde de alguém), nos narram uma história com estrutura clássica, guardando o desfecho para os últimos momentos, totalmente indiferentes às tonturas de ansiedade do ouvinte contrariado. Nestes casos, às vezes ouço parcialmente desligada, identificando apenas as palavras-chave, como um robô.

Numa frase famosa, Jean-Luc Godard diz que “todas as histórias têm início, meio e fim, mas não necessariamente por esta ordem”. Nunca concordei totalmente. Há histórias sem fim, há histórias sem meio e também algumas em que não percebemos bem onde está o princípio – as coisas começaram muito antes do início. Sem sabermos, há tempos imemoriais que tudo aquilo se preparava. Quando conhecemos alguém que será importante na nossa vida, temos muitas vezes esta sensação. Tornamo-nos historiadores dos que amamos, como diz Michael Ondaatje, e é como se víssemos simultaneamente o presente, o futuro e o passado. Talvez uma das características do amor seja este desejo falível de história.

Chegamos tantas vezes in media res! Somos como coleccionadores que só depois de terem reunido vários objectos que lhes parecem desconexos percebem que afinal têm uma colecção. Algumas vezes, só anos depois compreendemos o que se passou, ou o que alguém nos disse. A introdução escreve-se sozinha dentro de nós quando já nos encaminhamos para a conclusão. Outras vezes, entendemos de repente que fizemos parte de uma história que não teve meio nem fim.

Quando pedi ao Chat GPT para comentar a frase de Godard e escrever um ensaio contra as histórias com princípio, meio e fim, ele defendeu que as narrativas não tradicionais podem ser mais apelativas, na medida em que obrigam as pessoas a prestarem atenção, por não conseguirem prever o que vai acontecer a seguir. Mas mesmo a imprevisibilidade pode ser desinteressante. Há imprevisibilidades que se tornam mais previsíveis do que os textos com princípio, meio e fim. Alguns escritores que imitam Faulkner, ou que nunca leram Faulkner mas imitam os imitadores de Faulkner, talvez se tornassem mais interessantes se tentassem aprender a escrever textos mais lineares.

Quantos de nós, como um robô, não escreveram já textos em piloto automático? Eu escrevi muitos. Há prazos a cumprir, as cotoveladas na atenção que as outras coisas que preferiríamos escrever nos dão, gatos a saltarem para cima do teclado, pessoas a dizerem-nos como querem que escrevamos e todo um conjunto de convenções e tradições que não sabíamos que se fariam ouvir tão alto dentro da nossa cabeça e abafam tudo o resto. Com a cabeça ocupada por estas angústias, escrevemos, mas não gostamos.

Mesmo os maiores contistas têm textos que parecem redigidos em piloto automático, mas esta crónica foi inspirada pelo livro de alguém que publicou alguns contos que nem um robô com inteligência artificial muito mais refinada do que o Chat GPT teria sido capaz de escrever. Em piloto automático, Graça Pina de Morais escreve sobre personagens relativamente medianas, mas que, talvez por não terem preocupações financeiras, desenvolvem inquietações ou ambições artísticas ou intelectuais. Contudo, os melhores contos da antologia desta autora que a Antígona publicou em 2020 podem começar com os seus temas e personagens habituais, mas, a dada altura, encontram uma tensão ou faísca que os lança numa direcção inesperada.

Um deles é “Os Semideuses”, sobre um rapaz que quer ser escritor. O mais cativante neste texto é o facto de terminar sem conclusão, numa espécie de suspensão da narratividade. O protagonista tem uma espécie de epifania, mas ficamos sem perceber o que realmente lhe foi revelado. Num escritor como James Joyce, um momento assim resolver-se-ia em poesia – ou coisas parecidas. Neste conto, todavia, não sabemos se a revelação levará a personagem a escrever ou a abdicar das palavras, para passar simplesmente a viver. As últimas duas frases do texto são:

“Queria correr, entrar pelo mar dentro, misturar-se com a imensa superfície gelada, mas ficou parado, num esforço tenso.

Os olhos brilhavam insuportavelmente na noite deserta, com um clarão de futuro; neles estava concentrada toda a vida que havia de vir.” (p. 28)

Nenhum robô alguma vez terminaria assim um texto.

Graça Pina de Morais está no seu melhor quando identifica nas personagens uma força selvagem que não se percebe de onde vem nem para onde vai. Num conto como “Bem-Aventurados os Simples”, facilmente poderia cultivar os lugares-comuns do neo-realismo português, mas inclui personagens que desafiam todos os estereótipos e explicações, como Margaridona, uma mendiga com um corpo que parece resistir a todo o sentido, ou Ermelinda, uma criatura errante totalmente amoral, que, por uma bagatela, não hesita em matar uma personagem inocente com quem até simpatiza. Em “Desencontro”, a autora explora eximiamente a vertente destrutiva da relação entre um homem e uma mulher, mas com uma protagonista incapaz de se articular com a narrativa convencional do amor. E como esquecer Maria da Glória, a personagem principal totalmente incategorizável do conto “A Fé”, que, pelo contrário, se entrega plenamente ao sofrimento causado por um objecto de amor que não o merece, mas acabando por ser transfigurada por esta situação e alcançar uma espécie de intemporalidade ou eternidade inacessível aos outros?

Li algures que, quando começamos a envelhecer, o nosso interesse por histórias esmorece. Eu ainda me interesso por histórias, mas prefiro as que resistem às explicações e à narrativa. Num destes dias, alguém dizia que um dos motivos pelos quais gostava do Quinteto de Cordas em Dó Maior, de Schubert, se devia ao facto de o compositor não ter deixado qualquer descrição ou explicação desta sua obra. Numa época em que é quase impossível produzir alguma coisa sem fabricarmos uma narrativa explicativa em torno dela, é um prazer que algumas coisas existam apenas, sem que ninguém possa impor-lhes um sentido definitivo.

Ainda assim, a propósito deste quinteto de Schubert, conta-se uma história sobre uma das vezes em que o violoncelista Mstislav Rostropovitch o gravou, em colaboração com um quarteto, num estúdio perto de um lago. Ao fim do dia, insatisfeitos com o modo como a sessão decorria, os músicos decidiram sair do estúdio para desanuviarem. Terminado o passeio naquela paisagem tão agradável, regressaram, sentaram-se e gravaram. Correu tudo tão bem, que o disco ficou assim. Tinham-se livrado das histórias.

Simpatia inacabada #6

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